CÃES DESAPARECIDOS*

De repente, sem que se saiba para onde, o teu ou o meu cãozinho de estimação se escafede, por aí, e o trauma de um drama doído já ficou implantado no lar que sofreu a perda do bicho. Isto ocorre com frequência, em qualquer cidade, ali entre as beiras de mediana e cidade grande.

Quando se leva sorte e o gajo do cão aparece, por mão humanitária ou por desistência voluntária da deserção, aí, sim, o final feliz é comemorado com muita efusão. Se na casa houver crianças, tanto melhor: bate em todos os residentes um clima da maior comoção. Crianças, mais afetivas, deitam e rolam na festa do retorno do safado fujão.

Para comover o ouvinte, pelo rádio, sempre botam crianças pelo meio. Já ouvi muitas procuras de cães desaparecidos. E a primeira tática é anunciarem que, na residência, há uma criança que não para de se lamentar, que nem se alimenta nem dorme, exigindo a volta do cidadão animal que bateu em fuga. Ingrato, ele, pois em casa sendo cercado de tanto afeto, o fujão preferiu ganhar o oco do mundo.

Tive um desses cãezinhos que apreciavam dar fugidas espetaculares. Escreveu e não leu, o camarada Rabicó metia o pé na carreira. Escovado, ele. Ensebava a gente. Você abria o portão da rua, ele já se fazia de gato morto. Olhava de lado, como quem diz “’tou nem aí!” Mas era você ter um descuido e zás – o cachorrinho zarpava rua afora, por entre o par de pernas do bobo abridor do portão, na mais sincera caradura. E só regressava quando lhe dava na telha, às vezes lá pela boca da noite.

Nem gosto de falar no Rabicó, isto me bota logo comovido. Por causa de uma das deserções dele, diria mais por ser ele um velhaco de marca, o pobre pagou com a vida em uma avenida de muito trânsito, ali, nas proximidades. Teve crônica no jornal e até ganhou sepultura digna, em cova de bom tamanho, a céu aberto, lá num terreno baldio.

Com um baita sentir, desde a última sexta-feira, aos dez dias deste junho, que escuto as lamúrias de uma conhecida radialista e apresentadora de tevê, por haver desaparecido da residência dela um camarada cão de nome SUED. Segundo a dita moça da comunicação, trata-se de um anagrama: Deus, pelo avesso. Criatividade, lá dela, a dona do bicho.

Quisera adivinhar, iria eu, farejando pelo rastro, fisgar o Sued e trazê-lo de volta ao aconchego do lar da Regininha. Ia-me esquecendo: a chorosa mulher do rádio e da televisão tem este nome carinhoso: Regininha. Em todos os canais a fuga do Sued já foi divulgada. Um cachorrinho preto, de raça tal, tosado na véspera do desaparecimento, levando uma cicatriz no lombo e visto pela última vez no bairro Pirambu, etc. e tal. Anúncios em vão.

Até agora, necas. Terça, ontem, já à tardinha, o roteiro do Sued era incerto e não-sabido. Mas pagaria mico para saber onde encontrá-lo, que não sei ouvir chororô de qualquer vivente com saudades de um cão. Honestidade a ressaltar, aqui: a dona do Sued não passou chantagem na cara da gente. Nada falou sobre criança em sua casa, guri a fungar por causa do fujão. Legal, achei isso. Sem chantagem emocional: “– Não quero outro, dado nem comprado, quero é o meu cão, e gratifico” – proclama a mulher.

Ora, que droga de coração! Aí venho eu e me lembro do poema de Luís Guimarães Júnior, “História de um cão”, que minha mãe tanto gostava de ouvir, na minha voz, quando eu ainda não passava de um boboca miúdo. Por causa desta e de outras, por causa das “Mães da Praça de Maio”, na Argentina, sobretudo por causa das mães dos nossos “desaparecidos”, sob o triste véu da ditadura de 64, um dia abrirei uma ONG não- governamental, e sem fins lucrativos, para localizar gentes e bichos desaparecidos.

Fort., 15/06/2011.

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(*) Com muito pesar, nesta quarta, pela mesma rádio

da dona do Sued, soube que ele fora atropelado e

morto. Um senhor deu a infausta notícia. Disse que o

pôs em saco plástico e o deixou, num lixão, próximo

ao Instituto Médico Legal - IML. Isto foi confirmado

por um portador da Regininha.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 15/06/2011
Reeditado em 16/06/2011
Código do texto: T3036090
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