A SÍNDROME DO COITADISMO1

Chega a ser cômico decretar estado de emergência por conta da elevação do nível do rio Jari, um fenômeno tão antigo, tão recorrente e tão previsível que os egípcios, dois mil anos a.C., não só já sabiam se prevenir, como ainda tirar grandes proveitos.

Você quer ver um americano, alemão ou japonês, por exemplo, ficar consternado, indignado, a ponto de se suicidar; insinue que ele é inferior ao restante do grupo ou incapaz de conquistar o seu lugar ao sol.

Você quer ver um brasileiro te excomungar sugira que ele pode superar um recorde mundial, ser o melhor da turma, sair de quinto para terceiro colocado em uma competição, passar no vestibular sem frequentar cursinho ou viver sem depender dos pais depois dos 25 anos.

O brasileiro, pro meu desgosto, assimilou tão bem a ideia de depender de alguém (ou de algo) que até na escola tem que ter a tal da dependência. E o aluno gosta tanto que não são poucos os que cursam o 3º ano médio devendo dependência no 6º fundamental. Essa paranóia de ser dependente é tão peculiar ao nosso povo – em especial à juventude, pro meu desgosto maior ainda – que quando depender dos pais, do governo, do destino, dos astros, da religião, etc. não é suficiente ou possível, o sujeito se torna dependente de drogas; mas ele tem que ser dependente.

Enquanto para os habitantes do primeiro mundo a independência vale qualquer custo – inclusive a vida –, para os do terceiro, o só pensar em ser livre causa calafrios, pânico e depressão.

Mas isso não é de hoje. Faz parte de nossa gênese como nação. Nos idos tempos de colônia, enquanto o resto do mundo brigava para se livrar do colonialismo e da escravidão, o Brasil fazia o caminho inverso. Enquanto em tantas outras colônias milhares trocaram a escravidão pela morte na luta pela independência e o sonho de liberdade, no Brasil, tudo foi negociado; e se houve luta, essa jamais foi para conquistar a independência ou para abolir a escravatura; pelo contrário, aqui se lutou – e até hoje tem gente reclamando indenização pelos prejuízos causados por essa mudança tão brusca (que até hoje ainda está em curso) – e relutou... mas para que se mantivessem ambas situações.

UMA CONFUSÃO PARTICULAR: Eu não sei se, cada ano, quando milhares de alunos, induzidos pelos seus professores, saem às ruas para desfilarem no famigerado Dia Sete de Setembro, estão mesmo comemorando a suposta independência ou ainda é uma forma de protesto por termos perdido os postos de maior colônia e maior nação de escravos do mundo.

Quando criança, me ensinaram (e, graças a minha mãe, eu aprendi) que uma das piores desgraças que poderia se abater sobre um ser humano era este tornar-se vítima de alguma coisa. Nunca imaginei que esse conceito viraria moda e que absorvê-lo traria status. Aprendi, também com minha mãe, que vítima é sinônimo de situação de desgraça inesperada e para qual não há chance de defesa ou restauração. Por isso é que me causa tanta estranheza a galopante banalização desse termo.

Como alguém – e até uma cidade inteira – pode ser vítima de um fenômeno natural que ocorre desde que o mundo é mundo e cuja recorrência é possível prever em detalhes milimétricos, como a chuva e, consequentemente, a elevação do nível de um rio, como é necessariamente o caso de Laranjal do Jari? Chega a ser cômico atribuir o conceito de vítima a um povo que, no século XXI (e eu estou falando depois, não antes de Cristo), declara estado de emergência por conta de um fenômeno tão natural e tão previsível que os egípcios – há dois mil anos (agora sim, a.C) – já sabiam não só prevenir, mas ainda tirar lucrativas vantagens do mesmo. Ou você acredita mesmo que as cheias do Nilo traziam somente bênçãos? Mas não se encontram nos livros de História registros de que os egípcios eram vítimas das cheias do Nilo. Antes, pelo contrário, que tal fenômeno era uma das principais razões do Egito ser o que era: o maior e mais avançado império que o mundo antigo – e talvez até o contemporâneo – já conheceu.

Nunca imaginei, repito, que ser vítima ou dependente tornar-se-ia algo tão comum e até glamoroso. Quem nunca viu os jovens sendo exibidos (e se exibindo) em horário nobre na televisão e, depois de terem sido presos em flagrante roubando, traficando, violentando, etc., queixarem-se (ou orgulharem-se, sei lá!) de serem vítimas da sociedade, do descaso do governo, da falta de atenção da família, do relacionamento amoroso fracassado, da escola, do trabalho infantil, do bullyng, da igreja, da religião, de Deus, do Diabo... de tudo; menos da inércia própria e da falta de determinação para lutar por uma condição digna de ser chamada vida?

Chamar um traficante de marginal chega a ser quase um elogio, pelo consenso de que sua condição o coloca, de fato, à margem do que chamamos sociedade. Dizer isso para um viciado, no entanto, é algo tão grave que pode levar o AGRESSOR à cadeia.

A alienação de nosso povo é tamanha que a maioria absoluta não consegue absorver que esse termo é empregado essencialmente em função da condição do indivíduo relativo ao restante da sociedade e não necessariamente à ação (ou ações) que ele praticou ou esteja a praticar. O dicionário2 define marginal como aquilo ou aquele “que segue a margem”; “indivíduo mais ou menos delinquente, que vive à margem da norma ética”.

Ser um marginal, portanto, longe de ser um criminoso, em essência, significa está fora, não participar de algo, está no limite, perto, ao redor, mas fora. Logo, dentro desse contexto, não há razão para traficante ser tratado como um monstro e o SIMPLES viciado, como um coitado, uma vítima. Ambos são, igualmente, marginais. Ambos não podem acessar os benefícios éticos e morais de convivência que a sociedade pode oferecer. Ambos, repetindo, estão à margem.

Só que em nossa sociedade (o reino encantado do coitadismo), ser traficante é ser bandido, monstro, marginal; ser viciado é ser vítima, um coitado que não teve oportunidade na vida e precisa das condolências do mundo inteiro. Traficar droga é ser responsável por milhares de mortes; consumir a droga, sabendo que ela é traficada, é ser vítima da incompreensão da sociedade. Contrabandear produtos é um dos crimes mais horrendos e imorais; comprar o produto contrabandeado é uma forma honrosa de protestar contra os elevados impostos; ganhar dinheiro com jogos clandestinos, como bingos e cassa-níqueis é contravenção, formação de quadrilha, imoralidade, etc.; viciar-se nesses tipos de jogos é um passatempo inocente, uma terapia para quem foi abandonado pelo mundo e encontra-se deprimido.

Enfim, no país onde tudo se negocia e cada um dá o seu jeitinho, é possível se produzir tudo, menos um filme de ação, posto que não existem vilões, só mocinhos, digo: não existem causadores de problemas, só vítimas.

Feliz Natal!

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* Membro da Academia Laranjalense de Letras

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Evidentemente, esse conceito, bem como as demais inferências do texto, não se aplica a todos os brasileiros; e algumas, nem mesmo à maioria.

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Dicionário Michaellis.