CORTANDO O CABELO

Após um bom tempo sem ir ao barbeiro ou seria cabeleleireiro, para aparar a juba, senti necessidade de mudar de ares e tentar um outro profissional. O antigo salão que eu frequentava tinha ficado longe demais; eu havia acabado de mudar de bairro e a coragem para este deslocamento não estava em dia. Sempre passava em uma rua aqui próxima de minha atual morada, no caminho para o trabalho, e notei que um pequeno e aconchegante salão estava sempre cheio. O sujeito deve ser competentente, pensei logo. Depois de algum tempo resolvi que seria lá mesmo o corte e em companhia da amada partimos célere rumo ao desconhecido à noitinha.

Uma rua depois viramos a esquina e pronto, uma placa indicava que estávamos em frente ao salão do Manoel. Era o mesmo nome do antigo cortador de cabelo. Já era uma sinal positivo. Entramos meio desconfiados e um sorriso largo do simpático barbeiro acompanhado de uma boa noite nos deixou mais à vontade. Manoel era um sujeito atarracado de cabeleleira cheia, usando óculos de armação preta e de conversa boa. Usava bermuda furtacor e chinela japonesa. O papo com o cliente já estava nas derradeiras considerações quando notei ao lado dois olhares curiosos atrás de uma pequena grade. Eram os dois filhotes do Manoel que aguardavam ansiosos, decerto o pai terminar o serviço para pedir uns trocados e adquirir algumas guloseimas na mercearia vizinha, que ainda exibia aquele antigo mostruário de doces rotatório. Era um colorido só.

O cliente se despediu, não sem antes de abrir a carteira e pagar pelo serviço. Olhei de soslaio e vi sete reais mudarem de dono. Analisei friamente a situação, digo o corte. Como o sujeito tinha o cabelo ruim, não dava para medir a capacidade do cortador. Levantei em seguida e me preparei para o martírio de ter de entregar meus fios derradeiros, para uma pessoa que eu nem sabia se dava conta do recado. Antes de receber aquele pano amarelado para evitar que o excesso de pelos me tomasse o corpo, adverti o Manoel meio sem graça que uns dois buracos estavam ainda relutantes em fechar na minha cabeça. Tudo fruto de uma calvíce que se tornava iminente. Manoel olhando por cima dos óculos e analisando bem a situação me confortou logo:

- Se preocupe não amigo, que eu tenho experiência em cabeleiras com buracos.

Levei na esportiva o infame comentário.

A tesoura começou a estalar nas mãos ágeis do Manú e entre uma tesourada e outra perguntei-lhe se trabalhava no ramo há muito tempo. Manoel sem preder a calma rapidamente confidenciou-me:

- Já trabalhei com muita coisa na vida. Fui engraxate, garçom, trocador de ônibus e até mineiro em Serra Pelada. Estou "mexendo com cabelo" há pouco tempo.

Meu olhar procurou rápido no espelho a figura de minha esposa que não escondia o susto e um riso desfarçado. Não estivesse com metade da cabeça já desprovida de alguns pelos sairia dali correndo.

Uma barata bem nutrida tirou um rasante na minha orelha e acho que deve ter escapado por pouco da tesoura do impertubável Manoel, que nem piscou. O vôo solo do destemido inseto terminou no meu colo. Com extrema habilidade o dono da barbearia acertou-lhe um cascudo rementendo-a ao solo. O som da chinela japonesa estraçalhando a nojenta Blattaria ou Blattodea(nome científico) foi inevitável. Manoel, agora com ar de serial killer tascou o seguinte:

- Essa não volta mais. Um sorriso ainda maior mostrou os dentões dianteiros e posteriormente os molares. Percebi um prazer sádico após o crime.

Procurei a mulher no espelho e a cadeira estava vazia. Provavelmente havia detectado a barata bem antes e tomado as providências de praxe: correu.

Deixei escapar um comentário cretino:

- Barata é sinal de dinheiro.

Na verdade, nem tinha coragem de olhar o inseto esmagado.

As últimas tesouradas se aproximavam quando percebi um certo agito na criançada; a mãe dos pirralhos havia liberado uns trocados para os meninos traçarem alguns doces. A navalha passando no meu pescoço perigosamente nos movimentos derradeiros e eis que os meninos já de volta da mercearia, com uma alegria incontida, passam correndo a milimetros do Manoel que mostrando uma habilidade incomum se desvencilhou e continuou o trabalho normalmente. Meus batimentos cardíacos por alguns instantes findaram.

O pequeno espelho, daqueles com armação vermelha, passeou a vontade por trás da minha cabeça e meu sorriso com ar de aprovação foi o suficiente para o Manoel encerrar os trabalhos do dia. Fiz o pagamento e me despedi do barbeiro e dos meninos, que a essa altura estavam de boca cheia e utilizando com vontade os primeiros dentes.

Eu e a patroa voltamos para casa abraçados e dando boas risadas desta inesquecível experiência.