Ieié Define

IEIÉ DEFINE....

Nazaré era a tia querida de Marilu. Chamada na intimidade de Ieié. Coração grande. Prestável. Nunca casou. Ficou no caritó como se dizia antigamente. Assim, depositava nos sobrinhos carinho de mãe.

Era natural de uma cidade paraense. Lá nasceu e viveu até os 15 anos quando perdeu os pais. Restava-lhe uma irmã mais moça e um tio rico que morava numa cidade do interior nordestino. Como o tal tio mostrou a intenção de ampará-las, as meninas embarcaram em um navio rumo a uma nova vida. A viagem do navio foi uma novela. Ambas contavam minuciosamente por horas e horas a luxuria da embarcação, descreviam o salão de festa, a elegâncias dos tripulantes e passageiros.

As órfãs se adaptaram facilmente, apesar do jeito esquisito de Ieié. Ela tinha medo de estranhos. Escondia-se para não falar com os desconhecidos. Tremia de medo de foguete e de rã, não gostava de andar de carro, tinha horror à fotografia. A mais moça era mais comunicativa. Tanto é que arranjou um noivo que foi logo advertindo, só caso se levar minha irmã.

E depois da lua de mel, lá vai Ieié com seu baú para a casa do cunhado. O baú da Ieié era herança de seus pais. De couro com duas letras cravadas F C, em forma de monograma. Ornamentado com rebite e ilhoses de latão. Quando seus sobrinhos nasceram e cresceram, o baú passou a ser o centro das atenções. Mas lá algum dia, ela fazia exceção e abria o baú. Era uma festa. Ninguém chegava perto. Os meninos estiravam os olhos e o pescoço querendo ver as bolas de gude, as minúsculas bonequinhas, uma lata cheia de miçangas coloridas que estavam guardados com um carinho especial. E como tinha cadernos. Uns com letras de músicas. Dizia pertencer a sua mãe. Letra gótica e bem seguras feita com uma caneta de pena, tinta marrom. Outros agendavam todos os aniversários de amigos, vizinhos, artistas, políticos e gente que mal conhecia. Em uma caderneta de folha amarelada, fazia anotações interessantes. Dia em que alguém viajou. Data que alguém morreu ou ficou doente e outras coisas que não deixava a gente ver. E esse baú era misterioso. No calar da noite emitia uns estalos. Diziam que tinha moeda de ouro escondido entre o forro e couro. Uma de suas sobrinhas fez questão de ficar com ele após a sua morte. Será que ela encontrou alguma moeda?

Ieié dedicara sua vida aos sobrinhos. Vivia fazendo doce de leite e distribuindo na boquinha de cada um dizendo: - pegue uma gorjetinha. Por isso todos naquela casa chamavam doce de leite de gorjeta. Sua farofa de torresmo era uma maravilha e quando não estava na cozinha ou com os sobrinhos, fazia renda de almofada e tricô. Morria de ciúmes de seus bilros. E para não brigar com os meninos que misturavam todos atrapalhando seu serviço, um dia ela disse: - Não vou mais fazer renda. E deu um fim na almofada. Era uma mulher sem ambição. Quando vendia os agasalhos e sapatinhos que fazia com tanta arte era por preço irrisório. Apenas tirava o material.

Os sobrinhos já crescidos faziam tudo para levá-la a uma viagem. Rever sua terra natal. Mas a sua desculpa era sempre a mesma. “Não vou porque não posso com meu baú”. Não abandonava por nada essa relíquia que trouxera de seus pais. Na verdade não ia porque não gostava de viajar e nem de agitações. Lia nas revistas, jornais, noticias de sua cidade e dizia: “- Pra que ir lá , já dei por visto”.

Seu ciclo de amizade era muito restrito. Nas tardes dos sábados quando os meninos eram pequenos, passeava com eles na casa das poucas amigas. Da D. Benta uma exímia cozinheira que sempre oferecia uma coisinha para beliscar. Fazia um peru... Cecília inventava guloseimas. Até doce de pitanga ela fazia. E tinha D.Ziroca, com um excelente licor, a Maria Helena, a Nedi entre outras.

Os meninos cresceram, a cidade evoluiu. Chegou o sinal da televisão e a vidinha de Ieié continuava a mesma. Tricô, cozinha e afazeres de casa. Mas, não saia mais. Nem para ver a televisão na casa do vizinho. Era um aparelho caro e poucos possuíam na cidade. Os sobrinhos chegavam contando as novelas e insistiam: vamos Ieié , vamos assistir televisão no vizinho. E ela dizia “ televizinha” eu não assisto. Tinha umas saídas interessantes.

Finalmente seu cunhado comprou um aparelho de 22 polegadas. Preto e branco. Admiral.E desta vez a tia querida foi assistir com os sobrinhos. Como achou interessante. Gostava das novelas, dos programas e até das propagandas. Neste dia até abriu mão em dormir mais tarde. E quando foram se recolher Ieié abriu o baú. Tirou a cadernetinha amarelada e anotou algumas coisas. Os sobrinhos fizeram tudo para ela dizer o que era. Mas desconversou. Segredos e mistérios estavam gravados ali.

E só depois que ela partiu para sempre foi que conseguiram descobrir as escritas daquele dia. Sua letra era também bonita, mas trêmula em virtude da idade e da vista. Ela precisa, mas não usava óculos. Capricho. E estava lá a seguinte definição:

Televisão é assim: quem está fora não entra e quem está dentro não sai.

Saudades da Iéie...

Maria Dilma Ponte de Brito
Enviado por Maria Dilma Ponte de Brito em 29/11/2006
Reeditado em 12/06/2020
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