MEMÓRIAS DE UM GARÇON

No vértice daquele ípsilon formado à cabeceira da Avenida das Palmeiras, que ao bifurcar-se a pista da esquerda se denomina Rua da Garça e a da direita passa a chamar-se Rua Conselheiro Guerra, por muito tempo funcionou um dos endereços boêmios mais famosos de Bom Despacho – o Bar Cristal. Seu proprietário, conhecido por Chico da Quitinha, era um homem na casa dos quarenta, sistemático, mais alto que baixo, mais gordo que magro, desquitado, e até certo ponto vivendo sozinho. Fui evasivo neste “certo ponto” porque na realidade o Bar Cristal era um punhado de coisas boas, inclusive bar! O melhor picolé de coco da cidade; balcão de vidro para se ver as quitandas; prateleiras de madeira envernizada e nelas garrafas de bebidas que ficavam irresistíveis quando postas na geladeira Westinghouse (americana legítima) branca, barulhenta como o caminhão GMC do Joaquim da Usina! Isto no cômodo da frente, com uma porta de comércio aberta para cada rua, pois o tal endereço da felicidade era uma casa de residência adaptada para estabelecimento comercial, mantendo ainda a copa, cozinha, e dois quartos...

Antes que faça efeito aquele comprimidinho tomado para dormir, o leitor insone poderá indagar “– Como esse pirralho tem notícia até da planta da casa?” Aqui está o fio da estória: contei em crônica anterior que meu pai possuía um carro de praça, que era como na ocasião se chamavam os taxis, daí passar o dia todo fora, pegando corridas, enquanto eu inclinado a traquinagens vagabundeava depois da escola para desgosto de minha mãe. Foi até ela convencer o velho de que devia me arranjar uma ocupação. Amigos são para todas as horas! Meu pai e o Chico foram companheirões a vida toda. Um conversou com o outro e no dia seguinte eu estava empregado no Bar Cristal, montado num caixote de madeira – como engraxate! De dia, no bar, a movimentação maior ficava por conta do atendimento aos empregados da oficina mecânica e posto de combustíveis do Peruca: Zé Joaquim, Célio, Gê Cunha e tantos outros. Da hora da Ave Maria para a noite, trocava-se a freguesia. Saiam os mecânicos, entravam os boêmios. Achegavam-se Tilico, Guelão, Nicó, Mocho, Bagre, Colorido, Gustinho... e o bar virava cassino! Num dos quartos havia mesas, cadeiras, copos, cinzeiros e baralhos sempre esperando pelos jogadores. Ali o carteado corria solto. No cômodo contíguo, o quarto propriamente dito com cama de casal...

– Di, vai na Cruz das Dores e entrega este bilhete pra Tutuca! Ordenava o patrão. – E não abre nem lê, não – safadinho! Concluía o Chico tentando se fazer sério. Era a senha de que o pau (no melhor sentido) ia comer! Por Cruz das Dores chamava-se a parte baixa da Rua da Garça e suas fervilhantes casas de quengas. Na volta, ora ele me deixava tomando conta do balcão; ora me despachava até o Bar Tupã, na Praça da Matriz, comprando lá cigarros Continental, Saratoga, Beverly... Implacável, o tempo: a maioria daqueles fregueses já partiu para a viagem definitiva! Onde era o bar construíram um galpão rústico, que serve de depósito para coisas insípidas – arame farpado, rações para animais, lona plástica... Hoje, ao passar pelo 'ípsilon' me pergunto: quais emoções marcariam a vida de um garoto que por acaso lá trabalhe, para serem lembradas daqui a vinte, trinta anos, com saudade, voz embargada, olhos rasos d’água?... Das pessoas que despertaram em mim o gosto pela aventura de viver, os frequentadores do Bar Cristal serão lembrados com carinho – sempre! O nome Cristal vinha da mineração: atividade muito em voga na Bom Despacho de então e que fazia milionários da noite pro dia...

PARA: Maju Guerra - companheira de prosas no Recanto!

dilermando cardoso
Enviado por dilermando cardoso em 21/06/2011
Reeditado em 26/06/2012
Código do texto: T3047491