Stelinha Egg

                                      Vejo, extasiado, em um antigo vídeo, Stelinha recitando, com seu sotaque sulista, voz pausada, bem articulada, com pronúncia clara e perfeita:

                                 A lagoa de Abaeté, de águas bem escuras e  de areia branca como açúcar é  a morada preferida de Yemanjá.  À noite, os espíritos dos pescadores que ela amou, vêm fazer o baticum dos tambores.”

                               Não poderia imaginar que sessenta anos passados, tomo conhecimento novamente da cantora do folclore brasileiro, a paranaense Stelinha Egg.

                               Quem, nesse mundão de Deus,  vai se lembrar dessa cantora, razoavelmente conhecida nas  décadas  de 40 e 50?

                               Acabo de ver  um vídeo dela.  Triste, reclama que nunca recebeu uma homenagem do seu Estado, o Paraná. Ela que fez filmes na Europa, com seu marido, o maestro Gaya.            

                               Amigos, tenho uma história linda para contar sobre a Stelinha Egg.

                               Vocês não vão acreditar, mas recuemos no tempo.  1949 era o ano. Um menino jogava bola,  sozinho, numa manhã, no corredor do 9º andar, de um edifício na rua Santo Amaro. A rua era quase uma ladeira. Ladeira suave, começava na rua do Catete e terminava bem no alto, no famoso bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro.    

                               Um detalhe importante: a bolinha, de borracha, era pequena, do tamanho de uma bola de tênis. O menino chutava a bolinha contra a parede do corredor. Em certo momento, caprichosamente, a bolinha escapa do seu  controle e vai quicando pelas escadas até o 8º andar. Fica quicando em frente ao aptº801. Uma moça abre a porta e grita: “ não se pode dormir sossegada, com esses meninos jogando bola no corredor”. Ato contínuo, pega a bolinha, fecha a porta do seu apartamento e atira a bola para a rua.  O menino sai correndo para o seu apartamento chorando, reclama com a mãe que a vizinha jogou sua bola pela janela,  na direção da rua.

                               Já sei, já sei, vão me perguntar: mas não era proibido jogar bolinha no corredor? Antes de responder, digo que precisamos situar a cena dentro do contexto da década de 40. O Rio de Janeiro  tinha no máximo um milhão de pessoas e uma dúzia de edifícios residenciais. Perceberam? Não existia essa coisa horrível chamada condomínio. Síndico seria palavrão.  Era a época em que se morava de pensão, vocês  entendem?    Os meninos pulavam amarelinha e jogavam bolinha de gude na rua. Podia ser búlica ou  zepelin.  Se não me engano, a morte do Noel Rosa era recente. Cantava-se Lupicínio Rodrigues. Aos domingos, ao meio-dia, todo mundo ouvia o rei da voz, Francisco Alves, na rádio nacional, na  praça Mauá.

                               Sabe, eu, às vezes, implico com certas palavras, com certos modismos. Estou aqui relutando para não falar uma dessas palavras que até o meu papagaio recita de cor. Mas, realmente, não resisto. Vou dizer: esta época, amigos, era uma época mágica. Pronto, falei.

                               Antes de  prosseguir, vou contar a história de um amigo dessa época. Também não queria dizer o nome dele, mas era o Gilberto Toldo. Acho que ele vai gostar de ser citado.

                               Essa aconteceu no subúrbio. O Toldo,  meu conhecido, jogava bola na rua, no Jacarezinho, ou no Jacaré. Sempre confundo estes dois nomes,  nunca sei se foi no Jacaré ou no Jacarezinho.  Vamos em frente.  Era um jogo na rua. De repente, passa um carro Cadillac e o meu amigo não resisti. De brincadeira, atira a bola em cima do carro. Foi aquele estrondo. O carro lá adiante faz um retorno e volta. Sai do carro um cara educadíssimo, chama o meu amigo e, ao invés de gritar, ameaçar pedir indenização, o diabo a quatro, aconselha o garoto a não praticar aquele ato de molecagem.  Pois é, já ia explicar ao leitor. Calma, naquele tempo também não havia esse negócio de indenização. Que época! Que época!

                               Os leitores sabem quem era o cara do Cadillac?  Não sabem? Acho que ainda não disse quem era.  Pois é, era o Paulo Gracindo. Esse mesmo, o Gracindo do Bem Amado.

                               Era ou não era uma época mágica?    

                               Oferecido o contexto ao leitor, posso prosseguir. Claro, minha mãe foi tomar satisfações com moça do oitavo andar.   A Stelinha só dormia altas horas da noite, pois passava o dia inteiro nas gravadoras, junto com seu marido, o maestro Gaya. Só conseguia dormir na parte da manhã. As razões do menino, evidentemente, eram mais fracas, não tinha argumento para o seu jogo de bola no corredor.

                               Mas houve uma reviravolta no caso, a nossa cantora arrependeu-se do seu ato, pediu desculpas, a bola foi devolvida.  Não me lembro de que maneira. Claro, não joguei mais bola no corredor, apesar de ter ficado liberado pela Stelinha, que fez questão de entender o meu lado de criança, em detrimento do seu sono.   

                               Comecei com a bonita  frase recitada pela Stelinha, falecida desde 1991.

                               Isso aconteceu numa entrevista que ela deu na sua terra, o Paraná.

                               E, na oportunidade, ela reclamou que nunca foi homenageada pelo seu Estado.

                               Pergunto aos céus: será que ainda dá tempo para eu homenageá-la? Ela lembrou-se do baticum dos pescadores,  na lendária lagoa do Abaeté de Caymmi. Eu, humildemente, recordo-me de  antiga brincadeira que fazíamos no colégio, onde toda a turma cantava, liderada por mim, com voz de falsete.   Era uma turma de 50 alunos. Imaginem o som alto do coral improvisado.                                                                                          

                              Na hora em que o professor estava de costas para a turma, escrevendo no quadro-negro, tudo combinado, toda a turma cantava.

              Eu começava sozinho.  - acocha malungo! E toda turma cantava em  coro : “baticum gererê”

                E eu de novo. - acocha  com força!  E a turma: “baticum gererê”

                               Inconscientemente, rapaz travesso, já homenageava sem saber a   querida Stelinha Egg.  Foi bom demais  lembrar de você!  Saravá!