O Bigode

Ela acordou assustada e não reconheceu a figura masculina que saía do banheiro do quarto. Quem seria aquele homem? Dormira com ele? Haviam transado? E mais, ela acordou simplesmente nua. Que homem estranho, feio até. Ficou assustada, atônita. Se espreguiçou, bocejou, coçou o olho e ouviu: “Bom Dia”. Reconheceu. Era Pedro, seu marido.

Pedro recém saíra do banho. Estava calor e o quarto era envolto por uma cortina de fumaça, úmida. Enrolado na toalha, nu, beijou a face da esposa amada. Ouviu um grito horrorizado. Um grito de angústia, de tristeza. Um grito alto. Um grito de dor. Era um grito de Ana, sua esposa. Um grito que nunca ouviu. Não entendeu o ruído ensurdecedor, mas Ana não havia gostado nem um pouco do seu bigode. Um bigode vistoso, encorpado, robusto. Um bigode digno de grandeza. Um bigode de Olívio Dutra. Era um lindo bigode! Um bigode que havia lhe custado 1 hora e 28 minutos de técnica minuciosa com lâmina afiada.

Pedro agora era outro homem. Um homem respeitado. Não ancião, mas um jovem de 32 anos com a experiência da vida exposta na face, como uma vitrine. Seu bigode era um cartão postal, uma carta de apresentação, um monumento histórico esboçado sobre sua boca. Não eram pelos, nem muito menos uma mera barba. Não era fino nem grosso, nem grande e nem pequeno. Era um bigode na medida. Um bigode com todos seus artefatos emparelhados por tesoura pequena, aparados ao redor com uma Gilette Bic de três lâminas. Era, enfim, um sonho realizado.

Pedro, jovem administrador de uma fábrica de calçados, comunista convicto, lutador das causas operárias, do proletariado, das injustiças. Um militante moderno. Não um militante que sempre sonhou. Um militante da década de 60. Não o militante a altura de um Brizola, seu ídolo, que usara outrora metralhadora a tiracolo e bradava a multidões seu grito de liberdade. Mas era, sim, um bravo herói de si mesmo. Orgulhava-se. Sentia que o dever era expressar suas causas, expor a pessoas comuns como se vive, como se luta. Não podia usar metralhadora, nem sequer conseguira organizar uma greve. Mas podia, ah isso sim, usar um bigode. Seria sua marca, seu carimbo, seu grito brizoleano de luta. Seria sua bandeira asteada no mastro da vida.

Porém, sua vida se divide em dois momentos. O primeiro antes do bigode. O segundo depois. Tudo mudou. E sua vida desandou como flores caem no outono. Sua filha, de dois anos, não queria mais ser pega no colo, e sempre chorava quando o via. Teve brigas sucessivas com Ana, com seu chefe, com o síndico, com seu dentista.. Foi motivo de chacota dos amigos do futebol, dos colegas de trabalhos e do mundo. Foi, a partir do bigode, um ser humilhado, excluído.

Sua saga bigoduda terminou quando Ana, revoltada, numa fúria de raiva, depois de 6 meses de feição militante, lhe raspou sua marca enquanto dormia. Raspou sua face com a mesma Gilette de três lâminas que fazia o acabamento. Foi como lhe tirar o chão, como se arrancasse com a mesma lâmina sua cabeça. Terminou aí sua bravura.

Gente ignorante essa, nem sabem quem foi Brizola. Mas vem cá, um bigode pode mudar uma vida?