Os rompantes

 

                               Esta lembrança pode não ser correta, meu bom amigo leitor. Mas não farei retoques. Tudo ficará ao sabor da velha memória. O que quero dizer é o  espanto que me causa certas convicções ou  decisões das pessoas. Digo isso porque  poucas vezes  dei  um soco na mesa, e decretei:  “isso vai ser assim, está decidido” . Analiso  por tantos ângulos, avanço ali, recuo acolá. E eis a hesitação tomando conta de mim. Não que seja propriamente um indeciso, longe disso. Nas horas cruciais soube decidir, bem ou mal, mas decidi.

                               Ainda não consegui me fazer  entender. Eu gostaria mesmo era de escancarar uma decisão assim repentina, de supetão, vocês entendem? A palavra certa, talvez, seja rompante.

                               Acho que os amigos entenderão quando eu citar um desses rompantes,   que tomei conhecimento de minhas leituras.

                               A do Paulo Francis me parece um exemplo clássico.  Vejam bem: estava ele no estribo de um bonde lendo sobre filosofia. Como ele era um homem sofisticado e passeava muito em Copacabana, imagino que o bonde fosse  o 13 – Copacabana, via túnel  novo.

                               Pois bem, amigos, vamos imaginar que o bonde trafegava  em alta velocidade, entra  no túnel novo, no sentido praia de Copacabana. E exatamente na hora em que o condutor, que também andava pelo estribo cobrando a passagem dos passageiros ,     o nosso Francis teve o rompante dele.

                               O que se passou foi rápido e o condutor deve ter tomado aquele susto.

                               Perguntarão os meus leitores: mas qual foi o rompante? Ora, amigos, o rompante foi uma cena teatral magnífica, digna de um final de primeiro ato. Ou até do último ato. O Paulo, simplesmente, depois de apenas meia hora de leitura, chegou à conclusão de que a filosofia, qualquer que  ela  fosse, não tinha o menor valor, era pura perda de tempo. E o que faz o nosso protagonista?  Exclama bem alto: “mas esse livro não vale nada”. Ato contínuo, arremessa o livro pelos ares.    Diz ele que abandonou a filosofia ali, naquele momento,  com esse gesto triunfal.  

                               Acho isso o máximo. Fantástico.  Não sei. É possível que seja uma infantilidade minha, ou um encantamento pelo teatro.

                               Querem ver outro exemplo?  Esse é do Nelson Rodrigues. Era   o período do governo do Jango, da revolução cubana. A massa, que não pensa, aderindo ao comunismo e ao ateísmo. Até religiosos, para o espanto de todos, tornavam-se ateus. E aí veio o rompante do Nelson. Como os mais antigos não desconhecem, o nosso dramaturgo inventou nas suas narrativas o famoso terreno baldio e a cabra vadia. Era o cenário ideal para as reflexões dele e as decisões bombásticas. As passeatas se sucediam. Discursos  inflamados  na Central do Brasil. O pessoal da esquerda levando o Brasil para o ateísmo.

                               Veio, então, o doce rompante. O Nelson chama o seu melhor amigo, o mineiro Otto Lara Rezende, e os dois vão para o terreno baldio, com a presença da cabra, naturalmente. Era a  única testemunha, mastigando a paisagem.  Lá, discutem exaustivamente o problema da fé, da religiosidade e do ateísmo. Foi um diálogo altamente intelectualizado.  Neste cenário,  chegaram a um acordo e fizeram o seu manifesto na marra, assim como quem dá um murro na mesa. Proclamou o Nelson: “ não abrimos mão da nossa alma. Não abrimos mão da nossa imortalidade!”   

                               Concluo, concluo, amigo leitor. Por que contei essas duas histórias? Numa entrevista imaginária, me perguntaram: “ficou faltando alguma coisa na sua vida?” Resposta: “ não sei se estou sendo injusto com minha vida, talvez não tenha nada a reclamar. Mas sinto, lá bem no fundo, que um rompante  em algum momento da minha história  teria me  feito mais feliz.”    Os que privam da minha intimidade dirão: “mas você deixou de fumar de “estalo” e já faz quatro anos, não deixou de ser um rompante.”  Sim, sim, concordo. Mas eu queria um ato de maior valentia, sabem? Algo realmente nobre, corajoso, mesmo que dito no quintal da minha casa.  Já sei! Posso repetir, ao meu modo,  o que disse a fantástica Anne Frank: “ Não abandono meus ideais, que parecem tão absurdos e pouco práticos. Não abandono porque acredito, apesar de tudo,  na bondade humana.” Acho que agora posso morrer em paz.  Daqui a 50 anos...