HISTORIAS DE AMIGOS I: Amizade consagrada

Hoje senti vontade de contar sobre os amigos que tive até hoje, além dos meus pais e minhas avós. São poucos, é verdade, mas foram e são muito, muito especiais! Uns estão bem longe, outro nunca mais tive noticias, outros viraram anjos, um outro só vi uma única vez, mas está sempre presente virtualmente. Há outros anônimos que não gostam de se revelar. Em fim, começarei pelo primeiro grande amigo que tive.

Eu tinha quatorze anos, quando em uma missa percebi um rapaz que não deveria ser da cidade. Ele olhou-me como se também visse em mim algo diferente. Era como se nos conhecêssemos e nos revíssemos novamente, mas parecia impossível em minha curta idade. Ele tinha as sobrancelhas bem grossas, cabelos enrolados, moreno claro e aparentava ter uns vinte e poucos anos.

No momento da paz de Cristo, em que todos apertam as mãos desejando paz, ele veio ao meu encontro e apertou-me a mão. Depois, a missa acabou e não o vi mais. Um mês se passou, aproximadamente. Eu estava na escola num evento de abertura do período escolar. Sentada quase na última cadeira, ouvia ao longe as falas da diretora e de outros que faziam parte do quadro educacional. De repente, vejo por entre as fileiras de cadeiras, bem no final, como que por um túnel, um rosto conhecido que me fitou e sorriu. Era e!e sentado lá na frente e ocupava as cadeiras dos professores. Não demorou a ser apresentado como professor de língua portuguesa, inclusive da minha turma. Fiquei surpresa e ansiosa para saber mais sobre ele. No primeiro dia de aula, entrou na sala, se reapresentou e acrescentou uma nova informação: a de que era diácono e que se ordenaria padre ao final daquele ano. Levou um violão e se pôs a cantar para turma. Eu o observava meio de longe, mas encantada com seu jeito de ser. Havia alguma coisa de essência e luz que emanava de sua pessoa. A canção que ele entoou era mais ou menos assim:

“Eu vim cantar uma canção,/ que é meu jeito de lutar pra ver a paz acontecer/não trouxe nenhum violão/ que é meu jeito de mostrar que sou poeta e não cantor/ que minha voz está cansada e eu ando rouco de cantar/cantar a paz/cantar a paz/que nunca vem.”

A letra da música dizia de alguém que cantava sem violão, mas ele estava ali, com um, e cantando divinamente, como um anjo. Um anjo professor.

As aulas foram transcorrendo e nossa amizade e afeição aumentavam.

Havia, sobretudo, respeito e admiração um pelo o outro. Ele adorava minhas redações e sempre escrevia, no final, elogios aos meus escritos. E sempre ele colocava enigmas nos títulos das redações a serem desenvolvidas. Eram, algumas vezes, tão metafóricos que alguns somente eu conseguia decifrar e ele ficava maravilhado com aquilo. Outras vezes, frases entrecortadas no discurso das aulas que eu as captava e entendia perfeitamente, pois era como se conhecessemos o interior, a alma um do outro. E bastava um olhar meu para que ele entendesse tudo.

Ao final do semestre, alguns dias depois de meu aniversario de quinze anos, ele escreveu uma carta e me entregou no final da aula. E era a última aula dele conosco, pois no outro semestre se ordenaria padre e a partir de então se dedicaria totalmente à vida sacerdotal, em outro município. A carta começava assim:

“Martinha, são cinco horas da manhã desta sexta feira de junho. Antes de fazer minha física matinal, faço uso do papel onde escrevo com a tinta da esperança o meu desejo em letras... dizendo da minha alegria pelos seus quinze anos.”

Ah! Quanta emoção sentia ao ler aquelas linhas. Alegria por perceber seus sentimentos sinceros, sua atenção... e tristeza por saber que talvez nunca mais o visse novamente. Ele era meu primeiro amigo. O amigo com quem desabafava minhas dores, minhas angustias e com quem compartilhava minhas alegrias, textos de que gostava, minhas descobertas... As lágrimas brotavam de meus olhos como uma fonte dos mananciais da alma. E as palavras que encerravam a carta eram essas:

“Que ele (o teu sorriso) seja esperançoso como as cores gravadas neste papel, assim como docemente dividido, como o sabor deste bombom...”

Ele havia caprichado na carta: do lado direito colou uma pequenina boneca de gesso, e do outro lado um bombom. Ainda hoje a tenho, depois de tanto tempo.

Naquele mesmo ano soube da missa de sua ordenação e que as freiras estavam se preparando para ir, pois haveriam também noviças que confirmariam seus votos. E como eu queria ir! Mas era quase impossível meus pais permitirem. Além do mais não tinha condições financeira para ir, pois era em outra cidade. Entristeci-me, pedi a Deus que me ajudasse, de alguma forma. Até que subitamente, após alguns dias, recebi um convite das freiras que gostavam muito de mim e sabiam do meu desejo de seguir a vida religiosa. Elas acharam que seria importante para mim assistir aquele evento e perguntaram se eu não queria ir com elas sem qualquer custo. Elas conversaram com meus pais que permitiram e então eu fui.

Chegando lá ficamos à espera do inicio do evento. Quando começou entraram vários rapazes e moças todos de branco diante do altar. A multidão era imensa, mas pude vê-lo à distância. No momento em que ele confirmou os votos, estava tão serio. Senti falta de seu sorriso. Talvez fosse a tensão do momento ou o aglomerado de gente. Foi, contudo um evento muito bonito. Os hinos eram cantados com tão grande devoção que nos arrebatavam ao próprio paraíso.

Após o término da missa todos foram direcionados para uma comemoração. Tentava de todas as formas aproximar-me dele para que ele soubesse que eu estava ali prestigiando aquele momento especial de sua vida. Queria abraçá-lo e desejar-lhe toda a felicidade que meu coração mensurava. Não foi fácil, mas quase no final, antes de retornar para minha cidade, consegui encontrá-lo com apenas umas três pessoas ao seu redor. Pedi licença e ao me ver sorriu e, então, nos abraçamos com tanta intensidade de sentimentos que quase caímos. Ficamos sem jeito. Despedi-me e fui embora sem poder falar mais nada. Sem saber, mais uma vez, se o veria novamente.

Alguns meses se passaram e uma noticia me deixou radiante: ele pedira para começar sua vida sacerdotal em minha cidade, onde ele passara o ano anterior. Meu amigo estaria novamente perto de mim!Era muita felicidade!

Sim, ele retornara. E sempre que podia ia conversar com ele na casa paroquial. Seu jeito carismático conquistava a todos. Sempre era visto rodeado pela juventude que gostava de ouvi-lo tocar. Era amigo de todos e todas. Nossa amizade também só aumentava. Muitas vezes ele me salvou levando-me para casa em segurança quando soube que um médico da região me perseguia com intensões desrespeitosas. Tinha receio que pudesse me acontecer algo ruim. Ele era o meu anjo da guarda terrestre.

Um dia contei-lhe que havia decidido ser freira e que já havia dito a meus pais o meu desejo e que eles tinham me apoiado. Ele olhou-me, tão serio que desfiz o sorriso, e me disse: “Isso não seria uma fuga?” Fiquei sem palavras. Não sabia mais o que pensar. Qual era o enigma dessa vez? O que ele queria dizer com aquelas palavras? Olhei em seus olhos e compreendi tudo.

Em fim, o tempo foi passando com a mesma amizade. Mas sua presença em minha cidade não durou nem um ano. Pediram que retornassem a sua terra, pois seus conterrâneos queriam-lhe a presença; desfrutar da honra de ver um filho da terra como o sacerdote do lugar. E ele teve que obedecer, mas antes de partir deu-me seus contatos e disse que a qualquer urgência eu entrasse em contato, que ele viria imediatamente. E se foi. Fiquei mais uma vez sem meu amigo.

Tempos difíceis me alcançaram em que somavam-se muitos conflitos e tristezas ao meu redor. Comecei a trabalhar como auxiliar de secretaria em minha escola para me afastar de tormentos familiares e outros. E eu não tinha ninguém em que confiasse totalmente. No entanto, jamais ousei importunar meu amigo, suportava tudo sem nunca chamar-lhe ao meu encontro. Apenas meu pensamento o chamava.

Um dia, no auge do meu desespero, em que pensamentos fatais me dirigiam os passos por uma estrada, pensei muito fortemente em tê-lo por perto. Mas era impossível. Absolutamente impossível. Segui em passos lentos e desesperançados, quando de repente um carro buzina, uma, duas, três vezes. De súbito achei aquilo estranho, fiquei com medo pensando ser até algum admirador indesejável de quem fugia. Mas ao erguer os olhos de soslaio, vi: era ele. Ele estava ali diante dos meus olhos perguntando-me se eu estava bem. Como ele podia estar ali. Era um milagre!

Depois disso, passei mais de três anos sem vê-lo. Viajei e ao retornar, soube que ele presidiria a missa na cidade. Fui até lá, assisti toda a celebração e uma frase de outro padre, quando discursava sobre meu amigo chamou-me a atenção. Ela dizia mais ou menos o seguinte: " A ele, pela sua escolha de servir a Deus, foi dada a veste branca, a qual nunca lhe será arrancada."

Ao final fui dar-lhe um abraço. Quanta alegria senti ao revê-lo. Quanta alegria li em seu sorriso e em seu olhar ao também me rever. Perguntou-me como eu estava, quais eram as novidades. E depois de contar-lhe sobre meus estudos, disse-lhe que iria me casar no final daquele ano. Ele,como no passado, ficou serio, abaixou a cabeça, mas dessa vez não disse nada. Percebi que procurava as palavras, mas não a encontrava. Olhava-me e novamente abaixava a cabeça, mexia em alguns papeis, para dar tempo as ideias, mas elas não vieram. Talvez me achasse jovem demais para casar. Talvez.

E essa foi a última vez que o vi, pois realmente casei e fui embora para outro Estado. Nunca mais... Nunca mais... Quanto tempo!!

No entanto, esteja ele onde estiver sempre estará também guardado em meu coração como o meu primeiro, mais especial e querido amigo.

Que Deus o abençoe e guarde sempre!!

Marta de Lourdes Rocha Cosmo (Marta Cosmo)