HISTORIAS DE AMIGOS II: O anjo de cadeira de rodas

Não consigo lembrar-me exatamente do tempo, mas eu era ainda pré-adolescente. Uma senhora procurou-me e perguntou se eu aceitaria dar aulas de reforço escolar ao filho dela. Disse que sim, e ela conversou com meus pais que o permitiram. Então comecei a dar aulas particulares para um menininho, se não me engano de cinco a seis anos de idade. Um menino muito inteligente e educado. Sua mãe tinha também uma bebê de um ano, aproximadamente, e era uma jovem senhora muito amável.

Um dia ela contou-me que tinha uma irmã que nascera saudável, mas quando tinha uns nove para dez anos contraiu a poliomielite e perdera os movimentos das pernas. Os amigos que tinha haviam desaparecido, já não a visitavam. Ela que era alegre, se tornara triste; que gostava de ir à missa, de participar dos eventos para a sua idade, se fechara em sua casa e passava horas em seu quarto, sem muito ânimo para viver. Falou-me também de sua preocupação, de sua dor por ver sua irmã ainda tão jovem, naquele estado. A família se esforçava com todo o carinho e cuidados possíveis, mas a notava melancólica.

Não consigo mais lembrar-me de minha ação naquele momento em que ouvi aquele desabafo. O que sei é que quis ser amiga daquela menina e queria que ela fosse minha amiga também. Não por outro sentimento menor, mas por vontade e amor.

Lembrei-me que havia ganhado um livro, se não me engano numa brincadeira de amigo secreto num final de ano. O nome do livro era “O que os olhos não vêem”, e reli novamente na esperança de ver alguma dica de como me deveria portar com uma pessoa especial como ela, para que não cometesse algum erro que pudesse magoá-la. Eu não poderia errar com ela. Depois deixei-me guiar pelo sentimento de amor. Peguei uma folha de papel e caprichei em desenhos com motivos da natureza: pequenos insetos como joaninhas, borboletas e flores. É o que imagino ter feito, porque sempre costumava fazer isso ao escrever uma carta. Pedi, então, a Deus as palavras certas, e comecei a escrever para ela. Também não me lembro das palavras que escrevi, mas o conteúdo era de sonhos, esperança, pássaros nas árvores e em revoada, acontecimentos de sol, de estrelas que piscam os olhos sonhadores... Sei lá... Coisas que meninas pensam quando começam a deixar de ser meninas não querendo deixar de ser... Coisas que os olhos infantis enxergam a cada instante e que os olhos dos adultos na maioria das vezes, já míopes, não vêem... Além disso, também me apresentava, e outras coisas mais. Em fim, confeccionei um belo envelope, e a mensagem estava pronta para ser enviada.

Quando fui novamente ensinar o garoto, ao final entreguei a carta para a senhora e pedi que a entregasse a sua irmã. Ela sorriu quando viu a carta caprichada nas mãos e disse que entregaria, assim que pudesse ir visitá-la. Fiquei na expectativa durante um final de semana. Será que ela já havia recebido? Será que tinha gostado? Será que teria me aceito como amiga? Será que em alguma palavra falei algo indevido? Não, isso não seria possível, pois havia relido muitas vezes e o texto parecia bom.

E assim os dias se passaram, até que ela (a senhora) recebeu-me com um sorriso mais iluminado que em outros dias. E então contou-me como foi a entrega da carta; como havia sido a reação de sua irmã, da alegria que tomou conta dela e do agradecimento pela carta. Pensei então que sua resposta tinha sido o sorriso e sua alegria, e isso me bastou para que eu escrevesse mais cartas para ela. Assim, quase toda semana eu tirava um tempo para fazer uma carta especial para minha mais nova amiga.

E o tempo foi passando, e passando... até que um dia minha amiguinha disse à irmã que queria muito me conhecer pessoalmente. Que eu escolhesse um dia em que pudesse visitá-la e ficar um pouco com ela. E eu fiquei de ver isso. Não seria fácil. Meus pais não permitiam que eu saísse muito. Era aquele regime de casa para escola, da escola para casa; de casa para a igreja, da igreja para casa. Certo que eu era catequista e mesmo contra a vontade de alguns da familia, minha mãe sempre me apoiava e me deixar sair. Então, encontrei um dia, marquei com ela, peguei o endereço e fui.

Era bem distante, penso que não encontrei logo, não me recordo bem. Mas ao encontrar todos da casa me receberam com muito carinho e ela estava de prontidão à minha espera em sua cadeira de rodas. Seu semblante estava radiante de alegria. Apertei-lhe as mãos e a abracei rapidamente. Estávamos felizes, mas um pouco tímidas. Ainda mais que eu não costumava estar na residência de ninguém e sempre me senti deslocada nesses ambientes que são tão particulares a cada família. Cada lar tem suas regras e é preciso percebê-las para não ser inconveniente. Então esperei que me conduzissem como aprouvessem. Ela então convidou-me para ir até seu quarto e mostrou-me onde guardava com carinho as cartinhas que lhe tinha enviado e conversamos um pouco. A família dela queria que eu almoçasse lá, mas não poderia me alongar na visitar, também não sei se aceitei algum lanche, acredito que um sorvete e água. Depois pedi desculpas, e disse que não poderia demorar. Despedi-me dela e prometi voltar quando pudesse, mas continuaria a enviar as cartas.

E assim o fiz, continuei escrevendo-lhe sempre falando coisas diferenciadas. No entanto, não encontrava tempo para ir vê-la. Eu havia me envolvido com muitas atividades e meus familiares eram muito rígido e preocupado com minha segurança. Para piorar a situação a senhora, irmã de minha amiga a quem ensinava o filho, mudou de endereço e fiquei sem poder enviar as cartas. Contudo, em meu pensamento e orações sempre lembrava dela.

Um dia a senhora encontrou-me pela rua e falou-me que minha amiga queria muito me ver novamente e pedia-me que não demorasse a ir. Perguntei como ela estava e ela disse que estava bem. Mandei então lembranças e abraços. Não sei quanto tempo se passou, mas acredito que fôra pouco, e andando por uma das ruas, próximo do centro daquela pequena cidade, vi novamente a senhora passando e perguntei pela minha amiguinha. E ela olhando em meus olhos perguntou-me:

-Não sabes? Ela faleceu.

Aquelas palavras abriram uma cratera sob meus pés... Mal pude me manter de pé. Mal pude falar. As palavras atropelavam-se antes de chegarem à minha boca, enrolavam-se formando um nó em minha garganta.

- Mas como isso aconteceu? Quando aconteceu?

E ela pôs-se a me contar comovida. Disse-me que ela havia contraido sarampo e que essa doença evoluíra de tal forma que a levara à morte. Fiquei destroçada por dentro e envergonhada porque não havia cumprindo minha palavra em retornar lá. Não fui, então, uma amiga como deveria ter sido... Falhei...E eu não poderia ter falhado. Eu não poderia. Quis que o tempo retrocedesse. Quis com minhas forças arrastar os dias de volta. Eu só a tinha visto uma única vez... Para nunca mais... Ainda agora não consigo conter a emoção... As lágrimas me inundam a alma e escorrem por meu rosto e meus soluços se misturam com o barulho das teclas... Não pude estar ao seu lado nem na doença nem em sua morte. Não soubera de nada. Por que não a fui visitar logo? Naquele momento, diante daquela senhora, não consegui dizer mais nada além de expressar o meu espanto e minha tristeza.

Desde então não consigo acreditar no dia de amanhã. O amanhã para mim é como se não existisse. O amanhã é um lugar incerto, como se alguém se aventurasse comprando um terreno no céu. Prefiro o agora, o momento que eu posso tocar de alguma forma, o tempo presente ainda que também pareça não existir, pois o que é senão o tempo que passa e o que chega: a plataforma da vida. Desde esse fato procuro amar as pessoas sem deixar meus sentimentos ou ações para amanhã. No entanto, sei, ainda não consegui a eficácia nisso. Muitas vezes como naquele tempo, procuro estar perto somente quando posso ser útil e depois não vejo necessidade de minha presença carnal. Outras vezes creio que apenas o meu desejo de paz de amor é suficiente, que esses pensamentos tem poder de cuidar das pessoas que amo. Mas percebo, isso não é tudo, pois eu também às vezes quero colo. Quem não quer?

Ainda outro dia lendo um poema de Alonso Rocha,escritor paraense, lembrei-me dela, a minha amiguinha, e de outros que também estão noutra dimensão e dos que estão aqui, neste mundo de meu Deus. O nome do poema é “Breve tempo”, e está transcrito a seguir:

Se me queres amar ama-me nesta hora

enquanto fruto dando-te a semente.

Se te apraz me louvar louva-me agora

quando do teu louvor vivo carente.

Aprende a te doar antes que a aurora

mude nas cores cinza do poente.

Se precisas chorar debruça e chora

hoje que o meu regaço é doce e quente.

A vida é breve dança sobre arame.

Sorve teu cálice antes que derrame

ninho vazio que o vento derrubou.

Porque quando eu cair num dia incerto

parado o coração o olhar deserto

nem mesmo eu saberei que já não sou.

___________________________________________________

É isso aí.