RECANTO PERDIDO NO FIM DA LINHA (EC)

Tudo na forma para um dia festivo.

A nata da sociedade do vilarejo engalanada. Prefeito, delegado, vereadores, padre, gerente do banco, dono do mercadinho e demais autoridades. Respectivas esposas, concubinas e filhos que lhes coubessem haver e restassem naquele fim de mundo. Todos convidados para o evento que, dizia-se, teria inclusive a presença do governador.

A inauguração da nova rodoviária de Recanto Perdido.

Inacreditável!

Recanto Perdido teria uma nova rodoviária.

Não era bem assim. Era a primeira “Rodoviária.”

Recanto Perdido era o novo nome da antiga Nova Esperança, distrito esquecido pelo mundo desde há muito. Logo depois que a linha ferroviária desativou o ramal que o servia por ser deficitário.

Nesse tempo, Nova Esperança, criada por imigrantes, quase morreu. Dizia-se que só não morreu mesmo, por característica da esperança. Ser sempre a última.

Oficialmente, a Nova Esperança estava morta. Sequer uma placa de estrada lhe indicava.

De verdade, só existia no passado de quem a conhecera. A vila, desde o plebiscito, chamava-se Recanto Perdido. Assim constava dos mapas e estatísticas.

Agora o distrito passaria a ser a nova e última parada da linha de ônibus que atenderia a região. Causaria orgulho a quem durante bom tempo lá só teve acesso através de longas caminhadas, favores das raras caronas ou esperar a outrora nova Kombi do Yoshito, chacareiro que carregava verduras duas vezes por dia e transportava moradores que se deslocavam até a estrada para esperar o ônibus no sol. Se calhassem os horários, tinha condução para a volta.

Quem pode, fez viagem só de ida.

Eu mesmo fazia muitos anos que não voltava a sempre igual Recanto. Comecei a desfazer os laços quando, cheio de novas esperanças, fui estudar numa cidade vizinha, nem tão grande. Pensei que havia desamarrado todos os laços que me amarravam a vila, no dia do enterro do Naná, velho amigo de meus pais, que insistiram vir ao enterro. Fora a ultima vez.

Entretanto, como enviaram convite e reservaram lugar no palanque a todos os “novo-esperantinos” que viessem para o grandioso evento e trouxessem um alento de novas esperanças para a Recanto Perdido, eu estava.

Assim se dá!

Se a gente para ou é esquecido vai ficando para trás, não renova as esperanças e acaba virando um recanto perdido em nosso mundinho velho.

Enfim, eu viera na esperança de encontrar outros perdidos num canto da saudade.

Olhava, distraído ao passar do tempo, o vistoso colorido do amontoado de cores que pintaram a plataforma única para o ônibus, o guichê de venda de passagens e um bar. Tudo o que compunha a Rodoviária enfeitada de faixas e flores.

Não via isso.

Lá enxergava a velha parada do trem, esperando a chegada de qualquer pessoa que me fizesse um aceno e aos demais meninos. Parávamos o futebol ou de empinar pipa, por alguns instantes, para admirar a Maria-Fumaça que um dia nos levaria e as esperanças para algum lugar maior.

Vi o Nezinho, excelente contador de mentiras, como o seu Nenê, seu pai pescador que tirava latas de sardinhas do braço de rio da vila. Nezinho, dizia-se, tinha crescido na vida. Era almoxarife numa estatal.

A realidade trouxe-me seu Nenê, bem velhinho. Estava ali para a inauguração. Acho que era ele. A demência não lhe permitiu lembrar-se de mim. Quem sabe o Nezinho aparecesse e ajudasse.

Rápido como no futebol vi o Dé. Bom de bola. Criado apenas pela mãe. Órfão de pai, diziam alguns. Queria ser da seleção. Dé repetia a cada trem: ”Um dia vou voltar com a Copa do Mundo na sacola para mostrar para todo mundo que o filho da dona Zizi é alguém respeitável!” Não se sabia do Dé, desde que foi visto pegando carona na Kombi do Yoshito, dias depois da morte de dona Zizi.

Dona Francisca? Era ela? Ali com sua bandeja vendendo doces e salgados, sempre fresquinhos, do dia, para os que iam e vinham no trem.

Dona Francisca não era. Já se dizia ter mais de oitenta, quando eu era um menino de verdade. Pisquei os olhos e ela desapareceu. Em seu lugar, uma desconhecida oferecia salgadinhos de saquinho.

As flores! Ah! As flores.

Ruborizei.

Um dia, com toda a coragem de doze anos, juntei um ramalhete de flores de jardins da cidade e, cheio de sonhos e vergonha, ofereci a Nininha, filha da dona Regina e do seu Nicácio. Era a mais linda moça da cidade. Dizia-se e, para mim, era mesmo. Queria casar com ela. Será que hoje ela viria?

Não tinha notícias dela, desde quando eu partira. Dizia-se que ela chorou nesse dia. Depois, dizem, perdeu as esperanças e, na pressa, casou-se com moço, que conhecera na festa da cidade vizinha e também prometeu tirá-la dali. Levá-la para um lugar maior. Nem deve ter sabido que eu voltara para cumprir minha promessa, mas...

Ela também não veio!

Dizem estar na capital, mas ninguém tem certeza. Pouco se soube depois que seus pais se foram também. Dizem que moram juntos e a sustentam e aos netos, depois da separação do marido. Dizem que ainda gostava de mim!

Quatro ou cinco velhos moradores tocam a clarineta e a zabumba, avisando que a cerimônia vai começar. Não são nem sinal da grandiosa banda da cidade de meus tempos de infância. Quase me acordam para a realidade, como quando éramos aquietados com o psiu de Dona Lindinha, professora de tantos, chamando-nos a atenção, pois algo de importante seria dito e era necessário ficarmos em silêncio.

Um assessor justifica a ausência imprevista do governador e fala de improviso coisas de praxe, tais como a nova rodoviária será o primeiro passo para Recanto Perdido voltar a ser a Nova Esperança sonhada pelos seus fundadores. Talvez retome até o nome, como desejam antigos moradores que deram seu suor para o desenvolvimento do vilarejo.

Aplausos!

Mais alguns discursos... uma tesourada e... cortam a faixa!

A vila terá assunto por algum tempo.

Para passar o tempo que falta para minha nova partida, caminho um pouco ao redor da rodoviária, de onde avisto realmente o que sobrou da antiga estação de trens.

Ciente da realidade de não encontrar nenhum conhecido, despeço-me do passado e embarco no ônibus rumo à realidade da rotina sem futebol, pipa, amizades infantis e sonhos.

Um dia, da janela do trem que me levava para novas esperanças pude ver nas mãos de Nininha o colorido vistoso de um cartaz de cartolina, escrito a guache no coração:

“Volte logo! Saudades!”

Voltei! Cheio de saudades para meu Recanto Perdido.

O cartaz, entretanto, fora cortado pela tesoura do tempo.

Por estas artes do destino, o sacolejo do ônibus, antes do cochilo, trouxe-me mais recordações no dia que me fui.

Numa linha de trem que não voltaria mais.

Como a linha do tempo.

Que passe de novo em Nova Esperança...

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Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 08/07/2011
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