Andarilho

Corria descalço na contramão feito andarilho. Parava na esquina e, ainda nu, uivava aos transeuntes da vila. A vila era o mundo, e o mundo era seu. Era um uivo ensurdecedor, um ruído produzido por pensamentos. Um uivo de liberdade, pra si, e a só escutava. Os normais olhavam-no assustados. Olhos esbugalhados. Olhos de horror. Ninguém o entendia. Não compreendiam o seu ser diferente. Não entendiam suas próprias vidas, quisera compreender a vida do outro. Quisera ainda mais entender a vida de “pó”, seu apelido. Pó magro, esguio, pobre e negro. Sem eira, sem casa, sem mãe, sem comida. Pó não sabia sequer seu nome, cresceu sendo pó. Deve ser pelo pó que cheirava. Uma monossílaba atraente, uma monossílaba branca. Então pó via ao longe os carrões, as mansões, as roupas, as jóias, os ricos. Junto disso pó via a arrogância, o egoísmo e a dor. Sentia dor principalmente nas noites que fazia zero grau de temperatura quando dormia sob a marquise da ponte, sem cobertas. Aí sentia dor. A mesma dor sentida quando não comia. Quando os dias se passavam em jejum. Aí sim, seu corpo doía, sua barriga, sua alma. Mas a dor era ainda menor que a do filho do burguês que não gostava da comida quente servida. Devia ser menor sim, pois pó não reclamava a ninguém. Devia ser ainda menor porque o filho do burguês humilhava a empregada doméstica, sua serviçal, e jogava toda a comida fora. Pois assim pó vivia. Pó era da vida. Pó era um zé ninguém. Um zé ninguém com orgulho. Um alguém de coragem. Pedia, dificilmente lhe davam. Davam algumas migalhas que lhe satisfaziam as lombrigas. Não lhe davam gratidão. Não lhe davam sequer confiança e um bom emprego. Não lhe davam um teto. Nada! Então pó vivia. O que pó gostava mesmo era correr com pés descalços, e em seus pés negros criou-se a casca dura, sua proteção natural, uma palmilha de tênis Nike. Criou-se ali a casca da vida, a mesma casca que criou-se em sua alma. Tamponou sua ferida. O que pó gostava também era do seu saco de estopa, onde amontoava seus pertences. Poucos pertences, sim, mas valiosos. Seu papelão era valioso, assim como a latinha para servir a comida. Seu pedaço de madeira, suas pilhas terminadas e as três pedras da sorte. Suas três marias. Então pó vivia. Então pó sobrevivia. Pó nunca roubara, mas sabia que a cor da pele não era bem vinda. As pessoas se afastavam com nojo. Pó ria. Logo pensava: deve ser meu desodorante. Pó nunca usara desodorante! Aliás, ia-se oito dias sem banho, não conseguia juntar um real que carecia ser pago pela ducha. Ia levando. Mas pó gostava da vida. Pó gostava de viver. Pó gostava dos outros. Pó ajudava, pó sorria. Pó era gente. Pó era muita gente! Pó representa a massa. Pó tem sonhos. Eis um dia realizá-los, nesta terra das estranhezas.