Traumas de infância

Uma vez ou outra a gente revive uns traumas de infância pra colocá-los novamente em perspectiva.

Ontem foi assim.

Quem me conhece sabe que os meus cabelos são naturalmente crespos. Não são cacheados, nem encaracolados ou outra palavra bonitinha que se possa usar. São crespos mesmo, pixaim, cabelo difícil.

Tudo bem, pois depois de anos de cabeleireiros e experiências esdrúxulas eu me acertei com eles e eles comigo. Mas não foi sempre assim.

Para um bom conhecedor de cabelos crespos, lavou, acabou. Não dá pra colocar a mão, escovar, mexer, brincar com ele, sem ficar parecendo um dos Jackson 5, ou Caetano Veloso versão Tropicália.

Mais ou menos pela pior fase de crise de identidade entre eu e os malfadados cachos, a Barbie era o sonho de qualquer menina.

Ainda não havia a versão Chinesa/Paraguaia, e toda menina queria uma Barbie para arrumar, vestir, pentear os cabelos que iam até a cintura e fingir que ela era a mulher que queríamos ser quando crescer, mas elas ainda eram extremamente caras.

Assim, só viria como presente de aniversário ou Natal.

Para a minha felicidade total e completa, meu aniversário cai exatos sete dias antes do Natal, o que fazia as duas possibilidades virarem uma só.

De qualquer maneira, eis que minha tia se voluntariou a me dar a boneca que eu já queria ter fazia tempo.

Entendam que eu não era muito de bonecas. Preferia brincar de escritório, jogar algum jogo, ler qualquer coisa, mas a Barbie com seus longos cabelos loiros era a minha desforra, minha válvula de escape da realidade crespa em que eu vivia.

Eu deveria saber que quando a esmola é demais, o santo deve, sempre, desconfiar.

E onde fomos buscar minha boneca? No Hospital de Brinquedos, onde podiam ser achadas partes perdidas de diversos brinquedos para fazê-los ficar novinhos em folha.

Pois minha tia descobriu que podia comprar duas pernas, dois braços, um tronco e uma cabeça por metade do preço de uma boneca de caixa!

Foi assim que minha boneca veio ao mundo, numa cirurgia com toques de Frankenstein, fazendo-se assim, a nova criatura.

E qual não foi o meu choque, pânico, espasmo, síncope, quando a ÚNICA cabeça disponível era uma black power loira, com aquele sorriso plástico reluzente e aquele batom rosinha olhando pra mim.

Fui para casa com uma Barbie nua em pêlo e um cabelo black power, achando, desde cedo, que o mundo era realmente um lugar bastante sarcástico.

A Barbie ficou lá, com seus cabelos intocados por escova ou pente que fosse. Graças a ela e a uma catapora, aprendi a tricotar aos dez anos para vesti-la apropriadamente.

Fiz um guarda roupa completo. Aprendi até a fazer umas costurinhas.

Acho que ela me fez um pouco fashionista e muito pouco conformada com a minha realidade.

Não tive outras depois dessa.

Hoje sei que fazem as bonecas de várias etnias, para serem, de certa maneira, politicamente corretos.

Eu tenho cá pra mim que uma menina que compra uma boneca dessas quer o que ela almeja ser, quer fantasia, e não realidade.

Por isso, se eu fosse ter outra Barbie, desta vez compraria uma japonesa, por que estas, com certeza, vêm com o tal cabelo liso!

Ana Carolina Paes
Enviado por Ana Carolina Paes em 03/12/2006
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