No meio do poema tinha um diálogo.

(Tony R. M. Rodrigues)

E Deus chegou-se para o poeta:

- Psiu... psiu, aqui embaixo... oi!

- Opa! Beleza, seu Deus? Mas, vem cá, não estamos em lugares trocados, não?

- Seu tanso, eu sou Deus, estou em todos os lugares.

- Ah, viesse pra me xingar, né, seu megalomaniacozinho...

- Não, não... escuta... esse lance aí de estado de espírito nas artes...

- Que que tem?

- Vai por mim, não pega muito bem esse lance do poema-desabafo-quentinho-feito-agora aí...

Poeta fazendo cara de poucos amigos. Deus, cagando e andando pra isso, continua:

- Negócio é o seguinte: de criação eu entendo. Esse lance de tu pegares uma ideia e pôr pra fora sem dar uma suada básica de trabalho em cima (o soneto do Bilac, lembra?), acaba com parte do valor da tua mercadoria, mano.

O poeta ri por Deus falar com as mãos na cintura e o olhar bem sério. Pousa o copinho de boteco com o café e aceita entrar no diálogo:

- Vem cá... Cê já leu algum poema meu?

- Pergunta mais besta, não? Mas já, já li sim... e vejo potencialidade em ti, camarada, mas esse lance de querer sair publicando tudo que desce pela cachola assim, sem trabalhar um pouquinho mais primeiro...

- De qual deles você não gostou, Deus?

- Não, meu querido! Não é nem isso, a questão é a seguinte, deixa eu ser mais claro – conversa Deus, arregaçando as mangas -, tu até escreves bem, mas o lance é essa naba do imediatismo, essa naba aí entra em confronto com o lance do espírito.

- Como assim?

- Tipo, tu concordas (mesmo sendo ateu) que o poema tem uma questão de espírito, de inspiração, de intuição, essas coisas todas, não?

- Sim.

- Então. Imagina 10 poemas falando sobre o amor, um escrito em alemão, outro em japonês, dois escritos em 1940, um escrito antes de Cristo...

- Sim.

- Isso é uma coisa. Se você manjar de leitura na língua dos poemas, vai ter uma riqueza de leituras sobre poemas de amor, não?

- Talvez. Mas digamos que sim.

- Certo. Outra coisa é você imaginar dez mil poemas postados todos os dias num site literário falando sobre o amor, não achas?

- Sei... Hummmm... Será que não tem a ver com o lance da aura, não?

- Isso, acho que tem sim, aquela do Benjamin, né? Sim, tem sim. Mas veja que, do ponto de vista individual, temos sim dez mil autores originais, cada um está passando por seu momento de vida que o impulsiona a escrever um poema sobre o amor a sua forma, mas, do ponto de vista do leitor e do mercado, vai ter muita repetição, aí entra em cheque a originalidade. Estamos falando aqui de um problema de originalidade sem necessariamente falar de cópia, entende?

- Sim, Senhor. Não sou tão burro, né!

- Tá, e agora eu te pergunto: e como dar conta desse problema?

O poeta lima, sofre, sua... compõe um soneto silenciosamente para a alminha boa de um menino doente... pensa ouvir estrelas... por fim, desiste de tentar dar nó em pingo d’ água e confessa a Deus:

- Sei não, Deus... Dizei, amado Mestre, ó divino Guru.

- Cara, é só lembrar do “e o verbo se fez carne”! Na boa, veja só: usa o espírito a teu favor. Uma coisa é o estado de espírito, outra é a consciência e a presença de espírito, e a rádio poética consegue sintonizar essas duas faixas.

O poeta deixa escapar uma expressão meio de desagrado por esta comparação, mas Deus nem liga (muito) e segue sua explanação:

- Uma coisa muito boa é você fisgar a essência do poema, a chama, a luz, mas outra muito boa também é você ter como objetivo ir brincando seriamente com a forma de dizer, as figuras de linguagem a utilizar, a intertextualidade a manifestar, ir dando carne para seu esqueleto de luz, entende? Ora, um espírito de luz não foi feito para habitar um esqueleto! Por isso a necessidade de uma carne, e uma carne bem trabalhadinha.

- Mas isso tudo não acaba sendo muito “pedagógico”, Deus?

- Ah, passa por cima disso e tira o suprassumo pro teu ABC da literatura.

- E qual seria esse suprassumo?

- Que tanto o espírito como a carne alimentam um ao outro pelo paladar da essência.

- Bonito isso, daria um belo aforismo.

- Obrigado. E agora tenho de ir, pois Jesus tá de febre por causa de um espinho encravado no pé e ainda não passei na farmácia.