PESCARIA

Logo após a decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a União Estável entre pessoas do mesmo sexo, as duas estudantes universitárias decidiram assumir publicamente o relacionamento de dois anos e três meses, mantido às escondidas, mas não totalmente encoberto dos olhos mais aguçados.

A mãe da estudante de enfermagem soube, pela boca da filha, depois das primeiras semanas, do fôlego do amor e, apesar da resistência, aceitou o compromisso selado com um jantar.

O pai da estudante de jornalismo não era afeito às modernidades. Uma namorada no lugar de um namorado? Precisava pensar bem em que falar, como falar, onde falar. O velho pregava o desejo de netos correndo pela casa, jogando futebol ou entrando em uma das forças armadas. Como acabaria com o sonho dele?

- Que tal chamarmos meu pai para um pesqueiro?

- Aqui em Prudente?

- Aqui em Prudente, sim. A gente marca, almoça e, durante a pescaria, dá a notícia. E seja o que Deus quiser.

A estudante de jornalismo entrou na casa do pai, que morava com a mãe e o irmão divorciado, compartilhou dos problemas da faculdade, elogiou o novo som instalado no carro, agradeceu o bolo de cenoura e convidou a família para almoçar no pesqueiro. A mãe aceitou prontamente, o irmão esquivou-se e o pai manteve o costumeiro silêncio.

As meninas conheceram-se em um desses espetáculos musicais da faculdade. Entre conversas, cervejas e confidências, marcaram um cinema no domingo, um cachorro-quente na terça-feira, uma caminhada na sexta-feira à hora do almoço e, quando se deram conta, o amor consolidou-se nos fins de semana em que os filmes de Bertolucci, de Woody Allen e de Almodóvar enchiam as tardes e raspavam a adega improvisada e as massas pré-cozidas.

Faltavam dez minutos para o meio-dia de domingo quando o pai e a mãe da estudante de jornalismo entraram no pesqueiro, estacionaram sob a sombra insuficiente de um ipê, passearam pelo restaurante e vislumbraram a filha sentada ao lado da moça de rabo de cavalo. Apresentações habituais, cardápio do dia, cervejas, refrigerantes e suco de maracujá.

As estudantes e a mãe trataram do aumento do preço da passagem de ônibus, dos problemas de coluna, de alguns truques para assar a carne de frango com vinho e laranja, de viagens de fim de ano... O pai pulava silenciosamente os olhos para as bocas de quem falava. Suspirava, olhava o ar morto e as pessoas, nas mesas em volta, fomentando o mesmo diálogo, sobre os mesmos assuntos.

Engoliram os peixes em três tempos. A estudante de jornalismo convidou a família e a estudante de enfermagem para conhecer de perto a estrutura do lugar. Ao sétimo tanque, pegaram varas, amarraram iscas.

O sol quente pouco ajudava. De vez em quando, o pai e a mãe trocavam de posição, de lugar, de vara, mas os peixes não se dignavam a mostrar serviço. O pai da estudante de jornalismo se mostrava impaciente com os pequenos insetos. Bateu no pescoço e nos braços algumas vezes até que a filha encetou conversa sem pé nem cabeça, falando da gratidão, do carinho e do amor aos pais e, que acontecesse o que acontecesse, ela, a filha, sempre os amaria.

- Você precisa de dinheiro? Cortou o pai, puxando a vara e constatando que o anzol grudara em algum capim no fundo do tanque.

A filha voltou a falar do amor aos pais, mas cada pessoa tinha seu destino até que sua namorada, a estudante de enfermagem, interrompeu o discurso:

- Sua filha e eu não somos amigas. Não sei se o senhor aceita ou não nosso relacionamento, mas estamos aqui para assumi-lo...

- Você gosta de pescar? Indagou o pai, puxando o anzol: tinha mais utilidade para arrastar capim do que para fisgar peixes.

- Eu detesto, frisou a estudante de enfermagem.

- Eu também, disse o pai da estudante de jornalismo, jogando a vara ao lado. – Acho que o melhor, nesse frio, é tomar café. Meu filho trouxe um capuccino de uma viagem ao Rio Grande do Sul. Você – encaminhou-se para a saída, continuando a conversa com a namorada da filha – tem algum problema de diabetes? Porque esse café só é bom com bastante açúcar...

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 8 de julho de 2011.