DIÁRIO DE UM COPO DESCARTÁVEL

É óbvio que copo não fala, tampouco escreve, mas resolvi iniciar este diário para mostrar que nós, copos, apesar de não falarmos e escrevermos, temos uma vida sim! E uma vida muito dura, diga-se de passagem, pois não conheço mais ninguém que seja tão humilhado e discriminado como nós.

Para começo de história, nem nome eu tenho. Fui fabricado juntamente com uns 500 mil copos iguaizinhos a mim (isso só hoje!). Vocês não têm ideia o quão é confusa e louca a nossa mente: não é para qualquer um, mas saber que existem uns 500 mil clones seu por aí é de enlouquecer. Todo mundo sabe e viu o quanto o Lucas da novela sofreu por saber que fizeram UM (apenas UM!) clone dele. Imagina eu! A história do Lucas da novela é fichinha comparada à minha: eu tenho mais de 500 mil cópias!!! Se eu tivesse pescoço, já teria me enforcado.

Mas voltando ao diário, não sei nem por que dei este nome ao título deste texto. Um diário é algo que você escreve todo santo dia até completar um mês, um ano ou um decênio. No meu caso, a partir do momento em que saio do saco plástico, onde estou juntamente com mais 99 sofredores iguais a mim, estou condenado à morte - na maioria das vezes não duramos nem meia-hora, dependendo da quantidade de gente que está na festa... Quando se tem sorte, nossa agonia de virarmos um corpo inútil é adiada, por falta de gente que nos utilize. Mas por falta de outro nome, vou deixar “diário” mesmo. Quem tiver melhor título, avise-me antes que eu vire um plástico amassado ou o que é pior: virar solzinho, quando essas crianças do meio dos infernos rasgam a gente em mil tiras!!! Isso é humilhante!

Bem, como tive a oportunidade de relatar os momentos da minha pouca vida, para vocês verem o quanto sofremos, inicio meu diário de tristezas já na máquina de pressão: a gente já nasce sendo pisoteado e empurrado por um ferro de não sei quantas toneladas. Depois disso, somos empacotados com nossos clones (ai, meu Deus!!!) e colocados dentro de uma caixa escura por não sei quanto tempo... Aí não tem nada demais: só uma vontade interminável de morrer, porque isso é muito humilhante. Não somos como as taças de cristal, onde cada uma tem seu lugarzinho protegido, empacotada numa caixa de grife etc. Nós, na maioria das vezes, quando os empregados da fábrica estão de mau-humor, somos jogados no fundo do caminhão ou o que é pior: somos feitos de cadeira, quando estes ordinários sentam em cima das caixas para fumar um cigarro da peste!

Já no supermercado, ficamos meus clones e eu só olhando as pessoas passarem. Não sabemos se desejamos que nos levem para morrer logo ou se rezamos para ficar ali mesmo, sem fazer nada. Isso é lá vida... Às vezes me pego pensando: tanta gente ruim nesse mundo que merecia ser copo; e eu, generoso como sou, fico aqui, em branco pálido e triste nessas gôndolas malditas... Queria que quem estivesse lendo esse texto, experimentasse ser copo um dia. Para fazer isso, é muito fácil: se vista de branco, enrole-se num saco plástico e fique sentado durante uma semana na gôndola do supermercado da sua cidade para ver um pouco como nos sentimos, sendo discriminados e humilhados...

Finalmente, uma senhora gorda nos pegou! Ficamos com muito medo. Se aquela senhora era gorda, era porque comia demais ou o que é pior: bebia demais. Ficamos imaginando que tipo de festa ela estava preparando. Um chá de bebê? Não. Era muito velha e feia. Não tinha cara de ser avó. Um aniversário? Podia ser. Um casamento? Que pobre! Levar a gente para um casamento, é de lascar! Nós somos tão miseráveis que nem nós mesmos nos aguentamos. Não conseguimos imaginar que tipo de festa a velha feia estava preparando que usasse a gente a não ser festa de aniversário de criança. Certamente, depois de sermos usados, viraremos solzinhos nas mãos desses demônios!!!

Chegando à casa da velha tenebrosa, fomos jogados (sim, jogados!) em cima de uma mesa com um monte de papéis crepons em cima da gente. Quase morremos sufocados. Queria morrer logo, mas não tão sofrido assim, né?! E ficamos ali, esperando a hora em que seríamos estripados, amassados, rasgados, pintados, mordidos, lambidos, pisados e jogados ao relento, para alguma alma boa vir nos pegar para fazer mais clones meus!

De noite, quando já estávamos dormindo de tanto esperar, apareceu uma mulher que abriu o nosso pacote e foi nos espalhando por cima de uma bandeja de papelão. (Papelão? Ai, Deus, o que fizemos para merecer isso?) Enquanto a mulher despejava refrigerante dentro de nós, ficávamos olhando a ornamentação da festa: bexigas de tudo quanto era cor, o papel que estava em cima de nós foi feito de toalha de mesa e o bolo estava em cima dela, rodeado de bailarinas feitas de isopor. Era aniversário de uma menina de 9 anos, pelo que eu consegui ver. Meus clones já se mostravam muito preocupados, chegando ao ponto de apostarem como iriam morrer! Resignado como sempre fui, estava calmo. Qualquer morte era melhor do que viver desse jeito. Não desejo nem ao meu pior inimigo que ele vire um copo!

Enquanto não éramos levados para a morte, fiquei pensando nas taças. Uma hora destas, obviamente, estavam nas mãos bem cuidadas de dondocas da alta sociedade, que insistentemente levavam os cristais de forma cuidadosa à boca. Não eram como os convidados da festa da menina, que nos amassavam e só faltavam nos engolir com refrigerante e tudo! Que nojo! Realmente, as taças nasceram para brilhar. Veem todo o luxo das festas e ainda por cima não morrem! São cheias com o mais rico dos vinhos, dos champanhas, lavadas com todo o cuidado e secadas ao ar, para que o tecido da toalha não risque a belíssima escultura de cristal de que são feitas... Queria ter nascido taça. Se morresse - ao cair no chão por um bêbedo desgraçado (que é muito improvável que tenha um desses em festas de grande nível) -, pelo menos morreria feliz! Teria visto o vestido das granfinas, o traje esporte de grandes empresários do ramo têxtil e ouviria as fofoquinhas das ricaças da festa. Seria perfeito!

Esse meu pensamento foi interrompido por um grande grito! Um garoto derrubava uma criança, manchando todo o vestido da menininha de refrigerante. O copo que ela levava ficou completamente amassado. Um já tinha ido de vez. Falando em vestido manchado, por que em toda festa alguém derrama algo, sujando tudo? Quando não é refrigerante, é bolo, docinho etc., mas sempre tem uma pessoa dos diabos para sujar a festa dos outros. Isso quando não é a própria festejada que faz isso. Duvido que em festas nos bairros nobres na cidade onde estou (que nem sei qual é), aconteça alguma coisa do tipo. Só gente fina e independente, gabando-se e medindo com os outros os bens que têm.

Pronto. Pegaram meus clones. Para variar a minha humilhação, fui um dos últimos. Aquela mulher tinha-me enchido com o pior refrigerante da festa. Queria que tivesse sido uma Coca-Cola ou pelo menos uma Fanta sabor uva. Olhem como sou discriminado: todos os meus clones cheios de refrigerante sabor uva, laranja, guaraná, coca; e eu, o único que recebi o diabo de outro refrigerante. Até antes de morrer sofro assim. O resto do sabor do refrigerante com o qual me encheram ficou para os meus clones do outro pacote.

Todos apreensivos, tanto os convidados da festa como nós, que estávamos entrando no abatedouro. Mal a mulher nos pôs em cima da mesa, vimos um monte de meninos e meninas, em mutirão, vindo nos pegar. Em meio a milhares de mãos e dedos, um dos meus clones caiu ao chão. O líquido laranja espalhou-se pelo solo, molhando os pés de duas crianças que estavam próximas. Uma delas, com raiva, vingou-se: pisou em cima do copo. Estava morto. Era o segundo. Das duas bandejas de papelão colocadas sobre a mesa, fiquei na última fileira da segunda bandeja. Quiseram me sacanear. Todos os copos se foram, menos o de um clone vizinho a mim e eu, para variar. Alguém quis que eu visse a carnificina que houve na festa durante a meia-hora seguinte: clones meus espalhados pelo chão, amassados, rasgados, estripados, sujos, uns ainda com a metade do refrigerante abandonados, esperando a morte acontecer... e eu ali olhando tudo.

Já quase no final da festa, depois que os demônios avançaram nos docinhos e quase derrubaram o bolo em cima da aniversariante, uma criança gordinha, que já havia comido um montão, veio até mim e me pegou com uma cara de nojo. Não sou adivinho, mas a cara que ela fez falava por si só: “Só sobrou esse aqui? Já tá é quente!” Isso me atingiu profundamente em meu coração. Fiquei tão triste que nem percebi que o meu fim chegava. A menina gorda, antes de enfiar o pedaço de bolo que insistentemente havia pedido à mãe da dona da festa, bebeu sem piscar o líquido que estava contido dentro de mim. A cada gole, sentia-me mais leve e mais perto da morte. Depois de me esvaziar, a menina me pôs na cadeirinha ao lado e passou a comer pausadamente o bolo de chocolate que havia ganhado. Parecia que ela fazia de propósito: “Vou demorar bem muito para que esse copo asqueroso e ordinário sofra até o fim!” Enquanto ela comia, eu desejava que ela se engasgasse com aquele bolo e morresse! Que menina ruim! Não via os meus olhos clamando pela morte depois de tanta humilhação e preconceito...

Por fim, acabado o bolo e vendo que os amigos se distraíam brincando de outras coisas, como se não tivesse nada para fazer, essa menina gordinha (baleia, isso sim!) pegou-me e me deu uma mordidinha de leve. Pensei: será que ela também vai me comer? Que nada! A humilhação completa ainda não tinha chegado. O que eu mais temia aconteceu: ela começou a puxar as minhas partes para todos os lados possíveis, rindo com o solzinho (que solzinho? Eram as minhas tripas caindo no chão!) que se formava. Rasgou o meu corpo até não poder mais. Estava morto. Morto e mutilado por completo. Mesmo sem vida, pude ver a baleia assassina, com cara de desprezo, jogar-me no chão, como se o tipo de copo que eu sou fizesse jus ao meu estado: descartável.

Agora, já aqui em um lugar que não sei onde fica, porque não existe céu ou inferno para os copos (mais uma humilhação!), reflito: tem gente que sofre horrores por uma paixão não correspondida, uma separação, uma morte, uma perda de emprego... Nunca pararam para pensar no sofrimento de um simples copo como eu, que nasce sofrendo e morre pior ainda. A vida realmente é muito bonita, mas poucas pessoas se dão conta disso. Querem ser um copo? Hum, sabia que não!

Rafael Füller
Enviado por Rafael Füller em 20/07/2011
Código do texto: T3107100
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