Morte de Zézinho e a verdade sobre o bolo

Depois de vários dias frios e úmidos raiou o sol com grande esplendor. Mas veio a notícia ruim que contrariou a majestade do dia. Tomei uma cerveja, duas, fumei um cigarro metido em grandes devaneios. Decidi que evitaria o funeral por compreendê-lo sempre presente na cidade da minha alma. Conhecido simplesmente como Zé ou apenas Zézinho corria nossas ruas com seu modo peculiar de ser. Por longo tempo guardei uma história lendária da sua vida. Uma história partilhada com todos. Ouvi pela primeira vez a tal narrativa que tratava de uma posse indevida de bolo esfriando na janela. Jamais acreditei plenamente na versão popular do caso. Dele sempre guardarei a lembrança da mais pura bondade. Aquela bonomia eterna de menino até os seus setenta e um anos de idade. Caminhava entreolhando a palma da mão como se mirasse nela um terceiro olho iluminado fruto de seu mundo interior encantado. Nesse olho mágico na palma da mão adivinhava as horas. Quase sempre acertava mesmo quando se encontrava agitado imitando as descargas de rádio típica dos dias de chuva, sempre olhando para o centro oculto da mão.

Quanto ao caso do bolo havia algo estranho demais para o meu gosto sobre a tal questão. Jamais pude associar sua bondade espontânea com qualquer desvio de conduta. Cansei de vê-lo entrando e saindo das casas onde era bem recebido por todos. O bolo maculava esta imagem. Não era de fato verdadeira a tal versão.

Quando fiquei sabendo da sua partida um amigo contou-me a verdade. A primeira versão falsa dizia que havia um bolo na janela esfriando quando Zézinho passou e ouviu a voz dizendo: leva-me Zézinho! Difícil resistir a convite tão apetitoso. Cumpriu então o pedido fartando-se daquela delícia casual. Mas isto seria uma espécie de mácula onde sobrariam espaços para maldosos se refestelaram com leitura fácil: ah, para isso ele não é bobo! Pois jamais levantou uma moeda de ninguém. Sempre pedia. Olhando com atenção as notas maiores da carteira o que criava uma farra fácil em torno dele e de seu pedido sincero das notas mais altas. Na história verdadeira alguém todos os dias lhe deixava um lanche na beira de um poço artesiano. Neste dia ao buscar o lanche de sempre no mesmo lugar encontrou o bolo. Comeu na praça indiferente aos fatos. Desta vez a confeiteira estava esfriando o bolo de aniversário de seu filho, não era o lanche. Todo o dia naquele ponto estava disponível uma merenda. Era como se a merenda qualquer que fosse dissesse: leva-me Zézinho! Donativo de alma amável para benefício de alma pura. Agora estás perdoado desse famoso engano de terceiros. Só há ventura, beleza e simplicidade em tua história.

- Sabe por que o dia está ensolarado? Por que o céu está recebendo o Zézinho.

Deus pergunta-lhe: que horas são? Ele olha para a mão e depois mira os olhos miudinhos de Deus. São dez horas. Vai bater o sino da igreja. Dez horas. Adivinha: São realmente dez horas da manhã. Os sinos dobram. São realmente dez horas da manhã. Acertou. Sem relógio e sem ponteiro. Sobretudo sem nenhum pecado para a felicidade incrível do Senhor.

Santa Vitória do Palmar.

Dorme Zé

Sobre o tempo.

Inesquecível.

Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 22/07/2011
Código do texto: T3112465
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