MARCADO PELA MORTE - CRÔNICAS HISTÓRICAS

É sempre assim toda noite. Quando fecho os olhos aquela cena macabra me vem à mente. É algo que não posso jamais esquecer, não há como não me lembrar daquele dia que foi o pior dia de minha vida. Fui transformado num homem cuja marca esta na alma e uma ferida nela feita, exposta, aberta, incurável, carrego para sempre. Ouço todas as noites o barulho dos gritos, vejo a truculência dos soldados, os gritos de meu pai e minha mãe ante a brutalidade daquela chacina miserável. Tento dormir tranquilo e prometo a mim mesmo dormir em paz, mas não consigo. O barulho dos chutes da polícia na porta de minha casa e os gritos apavorantes estão por demais impregnados em minha mente que são incapazes de sair por aí voando à vontade por uns instantes que seja.

Minha infância na pequena Serra Talhada foi a melhor possível. Disso não posso reclamar nunca. Tive o que criança nenhuma naquele sertão pobre tivera. Aprendi a ler, estudei, escrevia, aprendi tocar sanfona e tinha até um óculos. Não sei por que o destino nos reserva caminhos não sonhados ou estradas que nunca pretenderíamos trilhar. Queria apenas crescer, continuar com meu trabalho, ser amável e gentil, como todo mundo. Mas não. A violência e a brutalidade transformaram-me num homem deveras implacável, mas em busca da justiça. Jurei vingar a morte de meus pais e vivo aqui nestes sertões, errante, sobrevivendo do medo dos outros e do respeito de meu bando, desde que Pereira, velho cangaceiro me deixou tomando conta do grupo.

Hoje acordei com um pressentimento diferente. Sinto um cheiro desigual nestes sertões. Andamos o dia todo e misteriosamente hoje senti um arrepio estranho quando fazíamos nossas orações matinais. O sol de julho castigou hoje como faz sempre, mas trouxe essa chuva pesada e forte, abençoada e esperada neste sertão de Sergipe. Tenho a estranha sensação de que alguém nos observa. Já é noite e na porta dessa gruta tento espantar a intuição negativa que me assola a mente e me rouba o sono. Este lugar é perfeito para a noite. Pedras grandes e caatinga fechada, chuva forte, todo mundo dormindo, até Ligeiro, meu velho cão de guarda repousa o sono da tranquilidade desse lugar. Somente eu fico aqui com o coração acelerado, imaginando coisas enquanto observo essa chuva que encharca o chão e oferece um refrigério aos cactos e à vegetação rasteira aqui do Angicos.

Paro um pouco e observo o sono profundo de Maria Bonita. Que mulher forte! Não poderia ter conseguido outra companheira. Ainda lembro o olhar de Maria quando estive lá no Santa Brígida e ela me encarava num tom de desafio. Aos poucos ela foi percebendo que eu nunca fui homem de ruindade não. Respeito muito os pobres e tenho o maior carinho pelos velhos. Tudo o que nos sobra são para eles. Lá mesmo no povoado conseguimos muito apoio deles quando deixamos uma boa soma. Maria seguiu meu olhar e não consegui mais desgrudar dele. Juntou-se a nós e deixou aquele que é um dos lugares mais pobres que eu já havia visto. Desde então somos um só e não nos separamos mais. Ela tomou meu espírito e eu o dela. Vivemos por aí neste mundo de meu Deus, com as bênçãos do Padim Ciço, errante no sertão do Brasil, onde tem gente com terra demais e gente demais sem terra nenhuma.

Encosto junto dela e tento dormir um pouco. Abro os olhos momentos depois ainda assustado. Tive pesadelos, mas não me lembro ao certo com o que sonhei. Apenas percebo meu coração acelerado. Parece que ouvi ao fundo o latido dos cães, mas eles estão dormindo tranquilamente ainda. O coração me parece estar na boca, tão forte palpita dentro de meu peito. Fora o barulho da chuva, há um silêncio sepulcral. Bobagem a minha, não há nada nestas bandas de se assustar. Ainda fico aqui deitado, sentindo a respiração da minha amada e aguardando tão somente a hora de começarmos o novo dia.

Enquanto espero a visita do sol, a iluminar o sertão e trazer luz à nossos olhos, fico pensando nas inúmeras pessoas que nos apoiaram nestas andanças, das vezes que vimos sorrisos no rosto dos pobres que antes estavam apavorados com o bando de cangaceiros se aproximando. Não sou um monstro nem um matador sanguinário. Sou um homem que carrega as marcas da crueldade, marcadas na alma de um jovem inocente que estava apenas querendo continuar com sua vida de artesão e poeta. Vivo marcado pela morte. Enfim, trilho agora este caminho e não perdoarei nunca a maldade que fizeram a meus pais e a tantos outros inocentes que foram acometidos de maldades tão grandes como eu.

Não tenho medo de nada nem de ninguém. Temo apenas por Expedita, minha querida filha. Tão linda, o rostinho da mãe, vive longe de mim e sempre se assusta com nossas roupas nos poucos momentos que nos vemos. Com ela eu deixo de ser o homem rude, que ordena, que manda. Com ela torno-me de novo uma criança, com ela no meu colo deixo-me inebriar do meu espírito de infância, da minha querida casa e dos meus colegas de rua. Com ela não sou o temível Lampião, sou apenas o Virgulino Ferreira da Silva, o ser humano dos sonhos e das andanças. Pensando nela sou homem o suficiente para deixar rolar uma lágrima, que igualmente chove torrencialmente numa alma ressecada pelas dores que me embriagam a alma. Neste sertão seco, até as lágrimas são raridades. Não há tempo de chorar, somente lutar a todo instante pela vida.

Bom, todos começam a se levantar e nos preparamos para rezar o ofício antes do café. Desperto Maria com um beijo. Já estou ficando cansado desse perambular para correr da polícia dia e noite. Ultimamente a perseguição tem sido mais implacável do que nunca, e temos que ficar deslocando praticamente todos os dias. O silêncio da noite começa a ser quebrado quando ouço o grito de um companheiro. Viro-me rapidamente, num impulso de proteger Maria. Tarde demais. Fomos pegos despreparados e alguns companheiros ainda estão dormindo. Sinto o frio gélido da morte anunciada. Ela viria mesmo, hoje ou amanhã. Cumpri minha missão, vinguei a morte de meus pais, amei, deixo minha filha, um pedaço meu neste mundo. Os soldados são muitos, aproximam-se atirando e em vão tento me esconder. Sou o prêmio principal e não vou ser poupado. Vejo um morto pelo chão e o soldado feliz, cortando-lhe a cabeça. Sinto meu fim e como ele será. Resta-me manter a dignidade de homem do sertão, forte como um cacto que resiste aos mais intensos raios do Sol sempre impiedoso nestas bandas. De repente encaro aquele que vai me executar, olho a olho, como um homem, de pé. Num momento final peço a Nossa Senhora que acolha minha alma, perdoe meus crimes e...

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 01/08/2011
Reeditado em 02/08/2011
Código do texto: T3132792
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