LATAS VIRADAS

Latas viradas

Ontem à noite, voltando para casa, encontrei um pobre cachorro em situação muito difícil. Revirando pequenas sacolas plásticas de lixo na frente de um bar, ele acabou entalando o focinho numa delas e rapidamente a sacola lhe cobriu toda a cabeça. Uma verdadeira cena de desenho animado. Apesar do desespero do animal em se livrar da carapuça, a cada tentativa, mais a sacola plástica lhe enroscava. Parei e fiquei observando. Esperando que ele parasse quieto e eu, então, pudesse lhe ajudar. Que falta lhe fazia duas mãos e um cérebro pensante naquele momento. As patas desordenadas não eram auto-suficientes para tal serviço. Depois de algumas cabeçadas aqui e ali, ofegante, ele finalmente cansou e desistiu. A cada respiração, o saco plástico se comprimia, abalizando o focinho. Aproximei-me, na intenção de livrá-lo de tal incomodo. Sem poder enxergar e perceber minhas reais intenções, o bicho se pôs a correr desesperado e rosnando num som plastificado. Deixei-o sumir por entre as ruas já desertas de Santana. Bem poderia ser que ele me agradecesse o favor com uma mordida, foi o que pensei, depois, na tentativa de livrar-me da consciência pesada.

Continuei meu caminho olhando para tantos outros sacos de lixo pela calçada da rua Dr. Cesar. O que passaria na cabeça do cão naquele momento? O mundo, dentro de um saco de lixo não deve oferecer uma visão atraente ou aromas agradáveis. Senti pena. Naquela noite, qualquer coisa me ligou àquele cachorro magro e abandonado a própria sorte. Um autêntico “vira-lata” (em tempos de sacolas plásticas).

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Em casa, o episódio do cachorro me levou a reler a crônica: “Complexo de vira-latas” texto onde Nelson Rodrigues ilustrava a inferioridade em que o brasileiro se colocava, voluntariamente, em face ao resto do mundo. O texto, bem humorado, faz uma analogia do contexto social com o futebol. Dizia ele que esse complexo de vira-latas é um problema que o brasileiro tem de fé em si mesmo. O disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado. Sim... E isso pode ainda ser contextualizado nos dias de hoje; Todos os entendidos de futebol do mundo dizem que o Brasil tem os melhores jogadores, o melhor time, o futebol arte, porém, em campo, nossa seleção apresenta um futebol mediano e acanhado. Após um empate com a Venezuela na Copa América, (time sem qualquer tradição no futebol) ouvimos nossos selecionados todos com o mesmo discurso: “Foi um jogo duro, difícil, temos que buscar a vitória, mas sempre respeitando o adversário.” Que respeito a Venezuela impõe no futebol? Telê Santana já dizia que a melhor maneira de respeitar o adversário é fazendo gols. Mas, o auge do viralatismo de luxo no futebol foi a vergonhosa derrota para o Paraguai. Nelson Gonçalves, que foi poupado de ver o Brasil perder quatro pênaltis (o que nunca havia acontecido antes) dizia que, no fundo do seu íntimo, o brasileiro se achava o melhor do mundo, mas perante aos outros, uma humildade auto-imposta e o medo de uma frustração dá lugar a uma auto-humilhação antecipada. Mas tudo isso é coisa do passado... Hoje os brasileiros evoluíram muito nesse sentido. Já não sofremos mais do Complexo de Vira-latas. Pelo contrário, hoje as mulheres adoram ser chamadas de “cachorra.” Trata-se de um elogio. Elas rebolam dando o melhor de si em refrões da música popular brasileira como: “Dá a patinha dá... Balança o rabo, vai”... Motoqueiro que realiza peripécias irresponsáveis como ato de coragem e exibição pelas avenidas de São Paulo, foi apelidado gloriosamente de “cachorro doido”... E tem até um escritor-poeta nascido e criado na periferia de São Paulo que se auto-intitula “O vira-lata da literatura”.

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Ah... Quanto ao cachorrinho da noite passada, com toda certeza, ele encontrou, pelo caminho, alguém com mais habilidade e afeição aos animais para lhe tirar daquela situação e oferecer algum carinho. Quem sabe um mendigo da estação não lhe adotará como acompanhante? Compondo assim um quadro recorrente nas ruas de São Paulo, quase um clichê; um homem puxando um carrinho de ferro-velho, acompanhado por um vira-lata com a corda no pescoço, a catar latinhas de alumínio. Efígie que virou símbolo (no artesanato feito com garrafas pet) no alto do prédio da Oficina Boracéia no bairro do Bom Retiro. Local onde os moradores de rua aprendem artesanato com o lixo reciclável. Ou ainda na bela e gigantesca escultura exposta no Conjunto Nacional da Paulista, por contradição, um dos maiores geradores de lixo da capital...

Marcelo Nocelli
Enviado por Marcelo Nocelli em 02/08/2011
Código do texto: T3134449
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