O FILÓSOFO E A BOLA DE VÔLEI

O filósofo encontrou-se sozinho numa ilha deserta. Pensava consigo mesmo durante os dias em que a vida lhe passava diante dos olhos, afastado da barbárie. De lá, seguro e solitário conseguia raciocinar melhor sobre todos os problemas da vida.

Chegara à mesma conclusão a que tantos outros cuja vida incólume parecia-se com a perfeita praia deserta diante do mundo imperfeito que se descortinava numa faixa estreita do horizonte perdido. Apreendera que a solidão era inerente ao espírito humano e que cada qual deveria buscá-la como o prazer final, não restando-lhe nada mais que a vida repleta do brilho que emanaria de si próprio, sem jamais deparar-se com qualquer penumbra que pudesse incomodar-lhe o ofuscamento de sua luz. Registrava seus pensamentos lindamente sobre a areia, sentindo-se um verdadeiro Anchieta a desbravar os caminhos da brutalidade vista de fora. Gaivotas, apenas as gaivotas, podiam aprovar a perfeição de seus postulados, sem exprimir qualquer pensamento oposto ou ao menos diferente do seu. Sequer podiam incomodar-lhe com ironias, posições inusitadas. Tudo era perfeito. Apenas lhe gritavam, repetidamente “Vai-se, vai-se!” a cada onda que chegava e lhe apagava a tese tão bem escrita e lógica. “Melhor assim!” pensava ele. “Amanhã escreverei algo novo. Tudo é passageiro. Nada é estável. Muito menos, contraditório. E nada me é conveniente ou prático, posto que minha vida não se liga aos problemas que analiso. O mundo é só um pretexto para a perfeição estética do pensar. Posso ser contraditório com o que penso. Quem irá me questionar? Se digo que sou liberto, quem dirá que sou preso? Se postulo em defesa da irreverência, quem me impedirá de ser rígido e defensivo? Se defendo a democracia, por que seria chamado de déspota quando governo meu mundo a pulso de ferro?” A ilha era assim, o melhor dos mundos.

Certo dia, contudo, a vida lhe oferecera companhia. Algo único na ilha, absolutamente fora de contexto, foi jogado à praia. Estava ali, sendo empurrada pela onda, movimentando-se involuntariamente como despojo de algum outro naufrágio. Felizmente, não era uma pessoa. O filósofo náufrago parou diante daquilo e observou: era redondo, branco e alvo como seus pensamentos, a forma perfeita a que tantos outros pobres diabos imundos do outro lado jamais parariam para contemplar. Pensou ele ser a mais pura metáfora de sua vida e de seu eu interior. Uma bola de vôlei, quicante, porém inanimada.

Desenhou com o sangue de seu pulso um rostinho na superfície cheia de gomos. Ficou bonita que só. Sentou-se diante dela e ali permaneceu, dividindo com seu igual toda a sabedoria que havia construído durante o tempo em que ficou naquela ilha. A bola, seu companheiro, olhava a tudo atentamente e ouvia com o silêncio e submissão dos aprendizes. Nada questionava, nada dizia. Apenas sorria.

Certa noite, durante uma grande tempestade, os ventos afastaram o discípulo do mestre. Dormindo sobre a areia da praia vieram as ondas e lamberam-lhe para o mar aberto, antes que o pensador pudesse despertar. Quando o Sol retomara o império sob o céu, só depois que a distância não mais pudesse ser vencida, o filósofo acordou e com o enorme aperto no peito viu a esfera reluzente avançar no azul do mais distante oceano. Desesperou-se ele, de início, por não ter mais companhia. Desdenhou, logo depois que percebera ter retomado a tão perfeita solidão que o pacificara a alma. Mas o pânico num terceiro momento, chegou para servir-lhe eternamente. E se agora todos soubessem seus pensamentos? E se questionassem sua vida no continente? E se aquele maldito, falso e sonso, levasse para além a percepção de sua existência no mundo? E se aquele estúpido, mau caráter e dissimulado revelasse seus segredos e a perfeição de sua vida naquele paraíso? E se, sabendo tudo, dividisse com outros o direito que a tanto custo ele, somente ele, o dedicado pensador alcançara, de construir em torno de si e para si os caminhos de uma existência perfeita e estável? E se... e se... e se...???? E se fosse para o mundo motivo de escárnio? Poderia ser aquela ridícula circunferência, um cínico?

Viveu, pois, o pensador, avesso ao horizonte, agora refém de sua eventual reprovação ou questionamento que o mundo poderia lhe oferecer, além do risco de ser resgatado. Até hoje, passados longos anos, o mar leva ao mundo os gritos frustrados daquele que depositara a confiança em alguém cuja perfeição só poderia ser superada por um espelho. Ainda é possível ouvir do continente distante, os gritos desesperados do pobre filósofo em busca da bola de vôlei batizada com seu próprio nome.

Edgar Rocha
Enviado por Edgar Rocha em 02/08/2011
Reeditado em 02/08/2011
Código do texto: T3135475
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