Preconceito Linguístico

Preconceito Linguístico

Nada mais me surpreende nesse Brasil. O pouco caso das autoridades responsáveis pela educação já se instalou no ninho do comodismo desse pacato povo brasileiro. Todos os dias são apresentadas denúncias e escândalos envolvendo a administração de nossas escolas e a gente não vê nada sendo feito para apurar e punir os responsáveis pelo crime contra nossas crianças e adolescentes. Recentemente, vi no noticiário a polêmica sobre o livro de português adotado pelo MEC para algumas escolas. Nele, a autora defende a linguagem coloquial, desobrigando o aluno de usar a concordância na flexão das palavras. O simples uso do artigo no plural bastaria para que a flexão esteja correta, podendo os substantivos e verbos permanecerem no singular. Segundo a autora e consequentemente o MEC, isso não constitui erro, apenas o uso inadequado da língua, o que poderia acarretar para o aluno apenas o preconceito linguístico, ou seja, discriminação por não dominar a língua culta, cujo domínio é função da escola ensinar.

Lembro-me com saudade dos meus tempos de estudante. Minhas colegas de magistério devem lembrar-se também de quando o nosso querido professor Pedro me obrigava a ler as redações na sala de aula. Ele só conseguiu o seu feito mediante uma ameaça de me lascar um zero, se me recusasse a apresentar à turma a minha produção de texto, para o que fui "sorteada". Lembro-me até do seu gesto em fechar os olhos e deixar cair a caneta na lista de nomes do diário, anunciando meu número de chamada, o 17. Tremi como uma vara verde. Não de medo de apresentar o conteúdo da minha redação, mas pelo pânico de não articular corretamente as palavras, de cometer alguma contravenção linguística. Falar correto era o meu sonho, e eu vivia ensaiando as palavras e construções verbais, que eram muito distantes do meu falar em casa, que era notoriamente pobre. Articular o você, tão comum na escola, era esnobismo em casa, onde todos falavam só a última sílaba, com muita propriedade. Eu, por ser a primeira, tinha uma guerra para vencer. Então eram críticas dos dois lados: na escola, por falar "errado" e em casa, por querer falar corretamente. Fui prisioneira do silêncio por muito tempo por causa disso. Conquistei a liberdade quando adquiri a autonomia de falar. E como eu, o resto do mundo só consegue se libertar, quando consegue essa autonomia de saber se comunicar corretamente, quando consegue entender o significado dos muitos falares que existem por aí, e aprende a se posicionar e usar a comunicação adequada ao momento e ao público a que se destina. Vemos constantemente piadinhas sobre nosso jeito caipira de falar, e sabemos que muita gente se recusa a falar em público por causa dos limites da língua que vida lhe impôs.

Não dominar corretamente a escrita e a fala é uma algema ideológica na liberdade de expressão de cada um. Embora isso não afete com a mesma intensidade a todos, cria sim, barreiras e preconceitos sociais. E a única instituição capaz libertar o homem dessa prisão invisível é a escola. E agora, vem essa onda de modernidade varrendo o bom senso e querendo semear a ideia inovadora da linguagem adequada e inadequada da língua. Para nós que já temos uma certa maturidade, é perfeitamente compreensível que temos que respeitar os vários olhares da língua, a regionalidade e os diversos discursos gerados pelas diferentes camadas sociais. A escola não pode levantar barreiras diante dessa diversidade de expressão que entra todos os dias pelas suas portas, mas deve ser capaz de conduzir seus alunos para alcançar o domínio da língua culta, que é a representação da nossa pátria, da mesma forma que os outros símbolos nacionais. Isso sempre foi feito da forma mais natural possível, e todo pai que leva seu filho para a escola, o faz com a certeza de que ali ele vai ser polido e politizado, vai ser conduzido para um saber maior, e não para reforçar os erros que ele carrega de casa para a escola, como o jeito "inadequado" de falar.

Então, que me desculpe a autora do livro e quem o escolheu para o ensino público, mas a função primordial da escola é ensinar e não reforçar o erro. E ler e escrever sem observar a concordância, me desculpem, é erro. Aceitável no cotidiano, no discurso informal, mas que deve ser exigido e assimilado na escola, sem restrições. A tentativa do governo em nivelar os alunos da rede pública tem se revelado mesquinha nos últimos anos. Avaliações dissimuladas, métodos flexíveis e tempo escolar deficiente para um resultado crescente são recursos usados frequentemente para a marcha contínua da demanda escolar. Mas essa de abortar a linguagem culta e querer passar a ideia que o aluno tem que ter consciência de que o máximo de consequência que isso pode lhe acarretar é o preconceito linguístico, não cola. Mais uma vez querem elevar o índice da educação do Brasil fazendo a nivelação por baixo.

maria do rosario bessas
Enviado por maria do rosario bessas em 07/08/2011
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