GUIMARÃES ROSA E TOMÁS DE AQUINO.CARTA.

Carta a um amigo.

Achei muito interessante a abordagem crítico-metafísica feita da introspecção mítica do autor Guimarães Rosa e uma parte de sua obra. Sempre achei ele um visionário surrealista de si mesmo, uma patologia complicada e conhecida, que o levou à morte antes de assumir o que tanto desejava, uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Se achava ele um veículo do sobrenatural? Fazia psicografia com quem "escrevia com ele", como o confessional sem cortinas?

É preciso conhecer verdadeiramente um autor para entendê-lo, daí o envio do texto para ler e melhor entender o autor de quem vc parece gostar. Sobreexcelente como crítica de perfil. Leia e dê sua opinião. O Roberto Amaral centra bem a razão do agente e "fim último" tomista ao Riobaldo. O crítico me sai melhor que a parte da obra criticada.Celso

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" Entre as várias correspondências entretidas pelo escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967) e seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, uma se destaca pela revelação que autor de Grande Sertão: Veredas faz sobre o seu processo criativo. Trata-se de uma enumeração hierárquica estabelecida por ele, quanto às razões que o levaram a escrever e o que, de fato, julga ser o mais relevante para a compreensão das temáticas garimpadas em seus escritos. Poderíamos dizer, sem medo de errar, que, na missiva em questão, o autor mineiro, nascido em Cordisburgo, a "cidade do coração", faz a sua declaração de princípios literários.

Um primeiro desvelamento feito por Rosa é quanto à valorização de uma dimensão "sobrenatural" ou "inconsciente" em detrimento de um movimento racional e cerebral na composição de seu trabalho literário. O todo de seu escrito, uma vez completado, resguarda, assim, muito de sua intencionalidade, sendo o restante atribuído a elementos que estão para além de sua compreensão. Por não saber nomear quem "escreveria" junto com ele, Rosa prefere dizer que esse estranho resultado pertence à própria vontade do livro em querer fazer-se a si mesmo.

Quero afirmar a Você, que quando escrevi, não foi partindo de pressupostos intelectualizantes, nem cumprindo nenhum planejamento cerebrino-cerebral deliberado. Ao contrário, tudo, ou quase tudo, foi efervescência de caos, trabalho quase "mediúmnico" e elaboração subconsciente. Depois, então, do livro pronto e publicado, vim achando nele muita coisa; às vezes, coisas que se haviam urdido por si mesmas, muito milagrosamente. Muita coisa dele, livro, e muita coisa de mim mesmo (2003, p. 89).

Para que não caiamos na tentação de simplificar a declaração de Rosa, tomando-a como uma certa cabotinagem de sua parte, no sentido de supervalorizar e, ao mesmo tempo, mitificar a sua própria obra, é necessário que tomemos como fulcro da interpretação os próprios elementos formadores de sua visão de mundo. Para tanto, é fundamental que tenhamos em conta que Rosa compreende a literatura como seu compromisso essencial com o homem e, nesse sentido, não separa a literatura da vida. Num diálogo com o crítico alemão Günter W. Lorenz, ele faz a seguinte afirmação sobre o papel do escritor: "Sua missão (...): é o próprio homem" (Lorenz, 1973, p. 318) e, em outro momento, diz: (...) é impossível separar minha biografia de minha obra" (Lorenz, 1973, p. 322) e conclui, "(...) a linguagem e a vida são uma coisa só (Lorenz, 1973, p. 339).

Tendo absolvido Rosa da acusação de cabotino, a partir da seriedade com que ele encara o compromisso do escritor, é necessário aprofundar os traços que compõem sua constituição cultural, para que tenhamos uma melhor e maior compreensão sobre o que ele chamou de "trabalho quase 'mediúmnico' e elaboração subconsciente" em seu processo de escrita. Para tanto, é imprescindível que levemos em consideração dois valores inegociáveis para Rosa, tanto em sua vida como em sua obra, que para ele são uma mesma e única coisa: a religião e a metafísica. Em outras palavras, em sua obra, Rosa busca, metaforicamente, enunciar por meio de inúmeros relatos e especulações, o mistério que rodeia o mundo e as pessoas, buscando dar sentido à vida e razão ao viver. Essa autodefinição dá a exata medida do amálgama entre o homem e o escritor Guimarães Rosa,

(...) sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estricto e das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes, talvez, como o Riobaldo do "G. S. : V", pertença eu a todas. E especulativo, demais. Daí, todas as minhas, constantes, preocupações religiosas, metafísicas, embeberem meus livros. Talvez meio existencialista-cristão (alguns me classificam assim), meio neo-platônico (outros me carimbam disto), e sempre impregnado de hinduísmo (conforme terceiros). Os livros são como eu sou (ROSA, 2003, p. 90).

Por essa curiosíssima confissão, não nos é difícil compreender porque na narrativa rosiana é tão recorrente a presença de elementos metafísicos e religiosos nas falas e nas ações de seus personagens. Estes buscam alcançar, em suas sagas, o supra-senso da compreensão humana sobre si mesma, sobre o mundo que a circunda e sobre todas as coisas que habitam esse mesmo mundo. Isso implica, necessariamente, uma trajetória interpretativa que, para Rosa, não se trilha somente com a dimensão racional. Antes, os mistérios da vida e do mundo só se desvelam para o ser humano, pelo que há nele de intuição, de revelação e de inspiração. Eis o cânone rosiano para a cognoscibilidade do universo. Como ele mesmo afirma, "(...) como eu, os meus livros, em essência, são 'anti-intelectuais' — defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, da megera cartesiana". (ROSA, 2003, p. 90). E elege os principais "inspiradores" de seu critério metafísico-religioso: "Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upaxinades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff — com Cristo, principalmente". (ROSA, 2003, p. 90).

Para termos uma idéia da importância que Rosa dá à dimensão metafísico-religiosa em sua obra, basta que observemos a escala valorativa que ele pontua para os aspectos que a salientam e de como gostaria que fosse compreendida: "(...) como apreço e acentuação, assim gostaria de considerá-los: a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos". (ROSA, 2003, pp. 90-91)(grifos do autor).

Por essa avaliação do próprio autor acerca das temáticas que têm maior relevância em sua obra, é impossível desconsiderar ou fechar os olhos para essa dimensão metafísico-religiosa que a constitui. O que não quer dizer que os outros aspectos mencionados e presentes de forma soberba em sua literatura não tenham a mesma importância, – e a fortuna crítica que já se construiu a partir do pequeno, porém, denso, conjunto da obra rosiana dá o testemunho disso – porém, se dependesse do autor, essa seria a grande contribuição que ele gostaria de deixar para os seus leitores, mas, como ele mesmo declarou, "(...) em arte, não vale a intenção". (ROSA, 2003, p. 91).

Após esse breve intróito acerca da presença marcante da metafísica e da religião na poética rosiana, circunscreveremos um aspecto fundamental respeitante a essas duas temáticas, presentes e recorrentes em sua obra de maior vulto que é Grande Sertão: Veredas: a questão do "mal". Para tanto, elegemos a filosofia teológica de Tomás de Aquino (1225-1274) como crivo interpretativo, pelo fato de esse tema ser um mote fundamental em várias de suas obras e, também, em virtude de ele buscar aliar, em suas reflexões, a religião (a partir dos preceitos do catolicismo) e a metafísica (a partir de fundamentos aristotélicos).

A idéia é estabelecer um diálogo entre as especulações mítico-religiosas de Riobaldo, herói da saga rosiana em questão, com as considerações teológico-filosóficas de Tomás de Aquino, acerca desse tão decantado e, ao mesmo tempo, controverso assunto. Diríamos mesmo que quando as especulações sobre o que vem a ser o "mal" vêm à baila, quase sempre resultam numa aporia, cujas partes que se dispõem a esse agón saem invariavelmente como entraram: irresolutas. Nosso intento aqui é bem mais modesto. Trata-se apenas, através de breves reflexões tomistas sobre o "mal", buscar esclarecer as dúvidas, os dilemas e a angústia que Riobaldo enfrenta na busca por compreender esse fenômeno. Ao colocarmos, frente a frente, um simplório sertanejo diante de um sumo doutor, num encontro gnosiológico entre desiguais, nossa esperança é de que, ao término do diálogo, ainda resista a máxima riobaldiana: "Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende". (ROSA, 2001, p. 326).

O tema do "mal" transversaliza toda a narrativa de Grande Sertão: Veredas. Desde o subtítulo da obra — "O diabo na rua, no meio do redemoinho..." — essa questão já está posta, se tomarmos, é óbvio, o diabo, como o arauto da maldade.

Riobaldo vive, ao longo de sua travessia, à procura da confirmação da existência ou não desse ser diabólico, renomeado com vários outros epítetos, como, "O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Côxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos..." (ROSA, 2001, p. 55) para evitar que, ao pronunciar o seu nome principal — diabo — "(...) ele forme forma, com as presenças!" (ROSA, 2001, p. 25). Mas o temor maior de Riobaldo é saber se, uma vez existindo, é possível se estabelecer um pacto com ele, compromisso esse que o protagonista de Grande Sertão: Veredas pensa ter feito, mas quer crer que não o fez. Eis a trama fundamental da obra maior rosiana.

Ao mesmo tempo em que Riobaldo renega a existência do diabo, "Então? Que-Diga? Doideira. A fantasiação" (ROSA, 2001, p. 25), ele o elege como o criador e o executor do mal, "(...) o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: 'menino — trem do diabo'? e nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemunho..." (ROSA, 2001, p. 26-27). Essa contradição, além de ser o seu tormento maior, se transforma no próprio eixo especulativo e orientador de sua existência. Diríamos mesmo, que muito mais que as contingências e as necessidades mundanas, Riobaldo é mobilizado por essa questão metafísica. É o seu impulso finalístico.

Tomás de Aquino afirma que "(...) todo agente opera visando a um fim" (SGC, 3, 2, 1). Chama ele de fim "(...) àquilo para o qual se dirige o impulso do agente". (SGC, 3, 2, 1). Nesse sentido, Riobaldo sendo um agente, ou seja, realizador ativo de suas ações, portanto, impulsionado para um determinado fim, poderá chegar a alcançá-lo ou não, mas essa dúvida não o faz capitular, pois que o impulso finalístico que o mobiliza diz respeito à sua própria constituição humana, ou seja, diz respeito à potencialidade que o ser humano tem em buscar atualizar-se sempre em novas e outras compreensões de si mesmo, dos outros e do mundo que o rodeia. Porém, pode acontecer que determinadas ações não conduzam ao fim destinado ou desejado para ou pelo agente, e isso pode se dar tanto com os "agentes naturais" (a natureza) como com os "agentes intelectuais" (os seres humanos), assim como prescreve a dogmática tomista:

Mas a ação, às vezes, termina em alguma coisa fora dela, como, por exemplo, a construção, na casa, a cura, na saúde. Outras vezes, porém, termina na própria coisa, por exemplo, o conhecimento intelectivo e o sensitivo. Se, no entanto, a ação termina em uma realidade fora da ação, o impulso do agente tende, pela ação, para esta realidade. Se nela não termina, o impulso do agente tende para a própria ação. Logo, é necessário que todo agente, ao agir, intencione um fim, e este, às vezes, é a própria ação; às vezes, algo produzido pela ação (SGC, 3, 2, 1).

Apesar de ser um simplório sertanejo, Riobaldo é um homem demasiado especulativo. Isso lhe permite buscar, ainda que intuitivamente, sentido para a sua vida e para o universo em que vive. Por exemplo, ele se reconhece, primeiramente, como um homem de ação e só posteriormente como um homem da especulação:

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro, não fantasêia. Mas agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia (ROSA, 2001, p. 26).

Dessa forma, podemos dizer que o impulso finalístico de Riobaldo mutou do conhecimento sensitivo para o conhecimento intelectivo, ou seja, ele passou de uma condição de ser humano conduzido pelas ações alheias, para uma condição de condutor de suas próprias ações. Segundo o Aquinate, "(...) o homem sente para imaginar, imagina para chegar ao conhecimento intelectual, e conhece intelectualmente para querer". (SGC, 3, 2, 3). A compreensão de essa ação prática ter culminado numa ação especulativa fica bem enunciada por essa perplexidade de Riobaldo,

Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar por um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais baixo, bem diverso do que em primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (ROSA, 2001, p. 51).

Ao buscar interpretar as suas ações e observações pretéritas, ele vai tomando consciência de que esse fenômeno também se dá com a natureza,

Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca brava, que mata? Agora, o senhor já viu minha estranhez? A mandioca doce pode de repente virar azangada — motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas — vai se amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? (ROSA, 2001, p. 27).

Nas palavras de Tomás de Aquino, "(...) em todo agente para o fim, dizemos que é o fim último aquele além do qual o agente nada quer (...)" (SGC, 3, 2, 2). No caso de Riobaldo, esse preceito se cumpriu, pois de jagunço, cujo ativismo não o permitia ir além de uma simplória condição, transformou-se em um fazendeiro "especulador de idéias" e atualizou-se em mestre de si mesmo.

Riobaldo atribui as características maléficas ou benéficas de sua antiga condição de jagunço e de seus companheiros de jagunçagem, a um certo determinismo estabelecido para si e para eles desde o nascimento e confirmados pela simples constatação manifestada por suas próprias aparências e modos de agir, mas, paradoxalmente, fala também de uma possibilidade restritíssima de opções e escolhas. Há, portanto, uma crença em Riobaldo de que um sujeito já vem concebido para maldade ou para a bondade, e tem poucas e remotíssimas chances de ultrapassar esse fado após o seu aparecer no e para o mundo. Em relação a si mesmo, ele diz, "De sorte que carece de se escolher: ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de jagunços; para outras coisas não fui parido" (ROSA, 2001, p. 31) e "E o 'Urutú-Branco'? Ah, não me fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi — que era um pobre menino do destino..." (ROSA, 2001, p. 33). Em relação aos seus ex-companheiros ele declara,

Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério — foi Medeiro Vaz. Que um homem antigo... Seu Joãozinho Bem-Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar como ele por dentro consistia. Joca Ramiro — grande homem príncipe! — era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e não teve sorte: raposa que demorou. Sô Candelário se endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó — severo bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, estouvado raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim (ROSA, 2001, p. 33).

Esse mesmo determinismo que Riobaldo vê nos seres humanos, também vê como pertencente aos seres da natureza,

Eh, o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces de uma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engulir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo (ROSA, 2001, p. 27).

Mas para Tomás de Aquino, todos os seres, humanos e naturais, agem na busca de alcançar um determinado fim, que se confirma ou não. Porém, todos são impelidos por seus impulsos finalísticos.

Quanto ao aspecto determinista dessa questão, há algumas aproximações entre Riobaldo e Tomás de Aquino, sobretudo, quanto se trata da existência de tal condicionamento, enquanto uma necessidade. No entanto, haverá divergência quanto ao desembocar desse mesmo condicionamento. Para Riobaldo, ele pode se estabelecer a partir de dois télos: ou do bem ou do mal. Já para o filósofo e teólogo medieval, necessariamente, "(...) todo agente opera em vista de um bem.” (SGC, 3, 3, 1). E por que, segundo Tomás de Aquino, o agente assim o faz? “Ora, aquilo para o qual o agente determinadamente tende lhe é conveniente, pois para tal não tenderia a não ser havendo alguma conveniência. E ainda, o que é conveniente a uma coisa, para ela é o bem. Logo, todo agente opera visando ao bem. Logo, toda ação e todo movimento visam ao bem” (SGC, 3, 3, 1). O que permite ao Aquinate concluir que, “Além disso, o fim é aquilo em que repousa o apetite do agente, ou movente, e do movido. Ora, é da essência do bem ser o termo do apetite, pois o bem é aquilo que todos desejam (...)” (SGC, 3, 3, 2)(grifos do autor). Nesse sentido, por mais que pareça estranho a Riobaldo, o fato de seus ex-companheiros de jagunçagem e dele mesmo possuírem características individuais tão díspares que o faziam realizar ações boas ou más, assim o faziam, sempre buscando o seu bem, ou seja, tendiam para o que lhes era conveniente. Da mesma maneira, se eles tendiam sempre para o que lhes era conveniente, ou seja, para o seu bem, também desejavam com avidez em se afastar do mal que lhes poderia vir a abater. Portanto, fugiam do mal. Assim o diz Tomás de Aquino,

(...) a mesma razão explica a fuga do mal e o desejo do bem, como também a mesma razão explica ser movido para cima e ser movido para baixo. Ora, todas as coisas fogem do mal, pois os agentes pelo intelecto fogem de alguma coisa porque a apreendem como mal. E os agentes naturais resistem tanto quanto podem à corrupção, que é um mal para cada coisa (SGC, 3, 3, 7).

Tomás de Aquino cuida também de deslindar como se dá esse impulso finalístico em direção ao bem, nos agentes intelectuais e nos agentes naturais. Os primeiros trazem consigo a possibilidade de determinar o que julga ser seu bem, e agem em direção a essa conquista, o que implica que estes seres podem possuir determinações necessárias, mas também possuem escolhas voluntárias. Nos outros, ainda que estejam impulsionados em direção ao bem, não podem escolher por onde seguir nem como agir, pois que, por não conhecerem o seu próprio fim, dependem de determinações alheias para o seu alcance. Nas palavras de Tomás de Aquino, "(...) o agente intelectual age para o fim, como que determinando o fim para si. Mas o agente natural, embora aja visando ao fim, (...) não determina o fim para si, porque não tem noção do fim, mas é movido para o fim pela determinação de outrem" (SGC, 3, 3, 6). De forma intuitiva, a narrativa de Riobaldo aponta para essa mesma compreensão, embora, ele desconfie que a destinação de todos os seres, ao contrário de Tomás de Aquino, não seja somente o bem, mas também o mal, como ele sugere ver presente desde as características físicas apresentadas por alguns animais, por exemplo, "a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces de uma cobra cascavel" (ROSA, 2001, p. 27).

Uma nova aproximação entre Riobaldo e Tomás de Aquino surge, quando discutimos acerca da possibilidade de no mal haver, desde sempre, uma intencionalidade do agente. Comecemos com essa súbita certeza do personagem rosiano, "Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! — é o que digo". (ROSA, 2001, p. 26).

Com que precisão metafórica (se nos é permitido esse oxímoro) Riobaldo alcança a profunda reflexão teológico-filosófica de Tomás de Aquino. Só podemos atribuir essas aproximações para o que há de metafísico em ambos. O Aquinate assevera, "(...) o mal está nas coisas sem estar na intenção do agente" (SGC, 3, 4, 1). A essa altura da discussão, já não é tão difícil compreender Tomás de Aquino. Dono de uma verve intelectual invejável e de uma lógica praticamente imbatível, ele já afirmou anteriormente que todo "agente opera em vista de um fim" e que este fim sempre é um bem. Concluímos disso que, se todo agente visa a um bem, o mal jamais poderá estar em sua intenção. No entanto, se o mal ainda existe e persiste, não será por causa da intenção do agente, mas pelo que nele falta. Vejamos como isso se dá, a partir da própria lavra do pensador medieval,

(...) o mal está nas coisas sem estar na intenção do agente. Com efeito, o que resulta de uma ação diferentemente do que for intencionado pelo agente é evidente que está fora de sua intenção. Ora, o mal é diferente do bem que é intencionado por todo agente. Logo, o mal acontece sem estar na sua intenção (SGC, 3, 4, 1).

E apresenta a sua grande solução para o problema do "mal",

(...) a falha no efeito e na ação resulta de um defeito nos princípios da ação, como, por exemplo, de uma corrupção no sêmem resulta o parto de um monstro e, de uma perna torta, o coxear. Ora, o agente opera segundo o que tem de potência ativa, não segundo o que a ela falta. Ademais, enquanto age, visa ao fim e intende o fim correspondente à potência. Por isso, o que resulta, correspondendo ao defeito da potência, está fora da intenção do agente, e isto é um mal. Logo, o mal acontece sem estar na intenção do agente. (SGC, 3, 4, 2).

Riobaldo utilizou os termos "os crespos do homem", "o homem arruinado" e "o homem dos avessos" para dizer que o mal está no ser humano e que não existe o mal fora dele. E mais, que tal mal está no ser humano, pelo que nele não vingou para que alcançasse a perfeição. Por exemplo, os "crespos" do homem é o que nele há de áspero, de agitado, de escabroso, de indecente, de indecoroso, o que o torna, portanto, ameaçador e, sobretudo, perigoso — "Viver é negócio muito perigoso..." (ROSA, 2001, p. 26). E o que é um homem arruinado? É um homem reduzido à sua própria queda, à sua miséria humana, enfim, um homem perdido. E um homem pelos avessos, então? É um homem constituído de uma humanidade ao contrário de si mesma; é um homem que culminou no reverso de um projeto humano; é um homem extraviado de suas potencialidades de "(...) homem humano" (ROSA, 2001, p. 624), enfim, é um homem mal.

E neste ponto alto de nossa discussão, Riobaldo e Tomás de Aquino confluem como duas vertentes de rio que se encontram e correm juntas em direção ao mar, posto que, para ambos, a partir, é óbvio, de métodos ou travessias diferenciadas, se inclinam na negação de haver uma essencialidade no "mal".

Para Tomás de Aquino, assentado na lógica aristotélica,

(...) nenhuma essência é em si mesmo má. Com efeito, o mal, como acima foi dito (...), nada mais é que a privação daquilo que uma coisa está destinada a ter e que deve ter, pois, assim, o nome mal é usado por todos. Ora, a privação não é essência alguma, mas, uma negação da substância (...). Logo, o mal não é essência alguma nas coisas (SGC, 3, 7, 1).

E para Riobaldo, amparado por suas labirínticas metáforas, diz, "O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma?" (ROSA, 2001, p. 26). Em outras palavras, a constituição do mal, para os dois, se dá pela privação do que em nós, agentes intelectuais, nos tornaria seres perfeitos, tais privações implicariam na não atualização de determinadas potencialidades que interferem decisivamente em nossas escolhas voluntárias e que resultam em más ações. Como declara Tomás de Aquino, "(...) se o mal por si mesmo não é causa de coisa alguma, o é somente por acidente". (SGC, 3, 10, 3) e "(...) para haver vício moral, este deve ser voluntário e não necessário" (SGC, 3, 10, 6).

Por último, e disso Riobaldo também já desconfiava: "Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar". (ROSA, 2001, p. 32). Em outras palavras, surpreendentemente o bem vem a ser a causa do mal, como afirma Tomás de Aquino, "(...) o mal é não é causado senão pelo bem", e esclarece, "(...) se o mal é causa de um mal, e como o mal não opera senão em virtude do bem, como foi provado (...), é necessário que o próprio bem seja a causa do mal" (SGC, 3, 10, 1).

Uma belíssima ilustração dessa afirmação do Aquinate, em Grande Sertão: Veredas, se dá no momento em que Diadorim — companheiro fiel de Riobaldo nas aventuras e desventuras pela imensidão do sertão das Gerais, da Bahia e de Goiás, e por quem ele devotava um profundo e estranho amor, pois que ambos eram homens (só com a morte de Diadorim, na batalha final do Paredão, é que Riobaldo vem a compreender o porquê desse amor inexplicável: ele descobre que "ele", Diadorim, era uma mulher) — declara a Riobaldo que jamais viverá outra vida, enquanto não cumprir a vingança dos assassinos (Hermógenes e Ricardão) de seu pai (Joca Ramiro). Com o coração encharcado pelo fel do ódio, Diadorim não pode pensar em ser feliz. Riobaldo não devotava sentimentos de vingança aos inimigos de Diadorim, no entanto, seu profundo amor por ele, o fez também cultivar ódio a eles. Muito menos pelo ódio em si mesmo, mas em razão de quanto mais rapidamente Riobaldo visse Diadorim livre desse fardo, as possibilidades de vê-lo feliz se consubstanciariam numa realidade plausível. Vejamos a cena:

"Tá que, mas eu quero que esse dia chegue!" — Diadorim dizia. — "Não posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto aqueles dois monstros não forem bem acabados..." E ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não se alterava. De tão grande, o dele não podia mais ter aumento: parava sendo um ódio sossegado. Ódio com paciência; o senhor sabe? (ROSA, 2001, p. 45-46).

E, aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim — mas não como ódio, mais em mim virando tristeza. Enquanto os dois monstros vivessem, simples Diadorim tanto não vivia. Até que viesse a poder vingar o histórico de seu pai, ele tresvariava. Durante que estávamos assim fora de marcha em rota, tempo de descanso, em que eu mais amizade queria, Diadorim só falava nos extremos do assunto. Matar, matar, sangue manda sangue (ROSA, 2001, p. 46).

Para concluir, e, de certa maneira, contribuir para que as incertezas de Riobaldo acerca de ser ou não um pactário sejam superadas e para e que ele consiga alcançar algum conforto em sua velhice tão carregada de angústias e perplexidades, como ele mesmo diz, "Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso" (ROSA, 2001, p. 26), e que ele possa elevar sua fé para além dessas palavras de um homem, para quem a coragem de enfrentar a imanência e todas as suas vicissitudes, não é o bastante para não temer a transcendência e suas promessas, oferecemos-lhe essas palavras de Tomás de Aquino, prenhes daquela indissolúvel verdade paulina que diz, "(...) a fé é a certeza das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem" (Hebreus, 11,1):

Com efeito, se nenhuma coisa tende para algo como para o seu fim senão enquanto este é bom, necessariamente o bem enquanto bem identifica-se com o fim. Por conseguinte, o que é o sumo bem será o fim supremo de todas as coisas. Ora, o sumo bem é um só, que é Deus (...). Logo, todas as coisas se ordenam, como para o seu fim, para um só bem, que é Deus (SGC, 3, 17, 1).

Conhecendo um pouco da irriquietude de Riobaldo e da sua capacidade de ouvir a fala alheia confiando-desconfiando — "A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio — essa é a regra do rei!" (ROSA, 2001, p. 39) — talvez pudéssemos ensaiar a seguinte cena: Riobaldo apresentaria um semblante, ao mesmo tempo, resignado e triste, olharia para o horizonte longamente, colocaria a mão no queixo e replicaria ao Aquinate com a seguinte frase reticenciada:

Em tanto, ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos — missionário esperto emgabelando os índios, ou São Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho. Aconselhar a justo. Minha mulher, que o senhor sabe, zela por mim: muito reza. Ela é uma abençoável. Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meu temer de consciência, que sendo bem-assistido, terríveis bons-espíritos me protegem.

Grande Sertão: Veredas - Conheça os personagens do livro de Guimarães Rosa

RIOBALDO – é o personagem que narra a própria vida, desde a juventude, antes de virar jagunço. Nessa época, estudou e aprendeu a ler e a escrever, tornando-se professor de Zé Bebelo, seu futuro chefe. Quando entra para a vida de jagunço, a personagem é batizada de Tatarana, que significa “lagarta de fogo”, apelido dado em homenagem à sua exímia pontaria. Em um dado momento da narrativa, depois de um suposto pacto com o Diabo, Riobaldo-Ta tarana toma a liderança do grupo, sendo rebatizado de “Urutu Branco”.

DIADORIM – personagem-chave do romance, é tida como homem durante quase toda a narrativa. Apenas nas últimas páginas o narrador conta que, depois de sua morte, quando o corpo é despido e lavado, descobre-se que se tratava de uma mulher. Diadorim havia conhecido Riobaldo, quando ainda eram jovens, em uma travessia do rio São Francisco. Nessa ocasião, ela já vivia disfarçada de menino e dizia chamar-se Reinaldo. Esse nome era secreto no meio da jagunçagem, utilizado apenas nos momentos em que ela e Riobaldo estavam a sós. Quando Riobaldo reencontra Reinaldo/Diadorim, tempos depois, passa para o bando de Joça Ramiro, motivado pela presença de Reinaldo. Riobaldo apaixona-se profundamente por Diadorim, o que provoca nele vários sentimentos contraditórios e de repressão, já que a paixão homossexual era uma relação impossível de ser aceita no meio jagunço.

JOCA RAMIRO – grande chefe político e guerreiro, lidera a primeira guerra narrada no romance, e seu assassinato origina a segunda guerra. Em oposição a Hermógenes, Joca Ramiro é o grande guerreiro, o líder sábio, justo, corajoso. Aparece como encarnação das virtudes.

ZÉ BEBELO – personagem intrigante. Dono de uma oratória verborrágica, tinha ambições políticas, mas, segundo o narrador, começara tarde essa busca pelo poder. Zé Bebelo é extremamente orgulhoso e gaba-se de nunca se ter deixado comandar por ninguém. Conhece Riobaldo quando esse ainda não era jagunço e aprende com ele um pouco de português. Quando Riobaldo lhe toma a chefia, Zé Bebelo reconhece a força do oponente e decide deixar o grupo. Riobaldo tem uma relação diferenciada com Zé Bebelo, conservando sempre certo apreço por esse personagem.

HERMÓGENES – para Riobaldo, Hermógenes era o “Cão”, o “Demo”. É o personagem mais odiado pelo narrador. Na primeira guerra, quando estão lutando do mesmo lado, Riobaldo já revela seu ódio por ele; na segunda guerra, quando Hermógenes e Ricardão assassinam Joça Ramiro, esse sentimento se acentua. No romance, Hermógenes é a personificação do mal.

RICARDÃO – enquanto Zé Bebelo guerreava por ambições políticas e Hermógenes era motivado por sua natureza assassina, Ricardão tinha interesse apenas na questão financeira. Fazendeiro rico, guerreava para depois poder enriquecer em paz".TEXTO DE ROBERTO AMARAL.

ESCLARECIMENTO.

Lançou um nobre comentarista, SEM AUTENTICAÇÃO, consideração de que o texto crítico pareceria ser meu. Presumo que seja o Roberto Amaral, JÁ QUE NENHUM EMAIL ME ENVIOU, e poderia.Para que não haja mais disfunção de apreensão possível, e só por isso fiquei surpreso, coloquei aspas , logo que referi no intróito que era carta a um amigo, e de quem se tratava o texto,CLARAMENTE, sic:

Carta a um amigo.

Achei muito interessante A ABORDAGEM CRÍTICO-METAFÍSICA feita da introspecção mítica do autor Guimarães Rosa e uma parte de sua obra. (QUANDO SE DIZ FEITA É FEITA POR OUTREM E NÃO POR QUEM REFERE).

FEITA POR QUEM?

E REMATEI ESTANDO EM REALCE QUE DE FORMA ALGUMA PODERIA PARECER MEU O TEXTO, CITANDO O NOME DO AUTOR, COM TODAS AS LETRAS, SIC:

É preciso conhecer verdadeiramente um autor para entendê-lo, daí o envio do texto para ler e melhor entender o autor de quem vc parece gostar. Sobreexcelente como crítica de perfil.LEIA e dê sua opinião. O ROBERTO AMARAL centra bem a razão do agente e "fim último" tomista ao Riobaldo. O crítico me sai melhor que a parte da obra criticada.Celso

PARECE QUE ESTÁ MUITO CLARO....

Celso Panza
Enviado por Celso Panza em 11/08/2011
Reeditado em 09/06/2012
Código do texto: T3153321
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