Cidade Oriental

Cidade Ocidental é longe, fica ainda em Goiás, e eu nunca fui até lá. Recebo, no entanto, informações privilegiadas sobre a vida dos seus moradores – ao menos de uma moradora em especial. É lá que mora a mulher que a cada duas semanas, sempre aos domingos, limpa a minha quitinete na Asa Sul. Toda vez que a vejo, ela me traz notícias que parecem vindas do oriente, tamanha a distância entre elas e a minha realidade.

São notícias de guerra, de gente que sofre para continuar vivendo, e que às vezes não consegue. Famílias em crise, parentes drogados, pessoas indo para a cadeia. Não é nada muito diferente de qualquer outro lugar no Brasil. O problema sou eu, que sempre vivi com relativo conforto, apesar de nunca ter tido muito dinheiro. Meus pais só foram se separar quando eu tinha 17 anos, e deve ter sido o primeiro caso na família em 100 anos. Os parentes sempre foram muito próximos e com famílias estruturadas. Coisa de alemão.

Não acontece o mesmo com a mulher da limpeza: ela tem sete filhos e, se não me engano, são três pais diferentes. O mais recente deles está na cadeia de Cidade Ocidental. É inocente, ela diz. Tentativa de estupro. Ela vai visitar toda semana – parece que o homem não tem mais ninguém. E ela me conta detalhes sobre a cadeia e o rígido código moral dos seus prisioneiros. “Você devia escrever sobre aquele lugar”. Parece que o homem é meio possessivo. Quando sair da cadeia, quer ir embora da Ocidental – e ela terá que ir junto. Ela não quer, diz que não é assim. Não sabe como vai ser quando ele sair de lá.

Na semana passada, ela levou até lá o filho que teve com o homem. Conheço a peça. Tem seis anos e gosta de mim. Está com a boca toda torta – o médico disse que foi um vírus. Tem que fazer fisioterapia pra voltar ao normal. “Mais quinze sessões, acredita?”. Levou o menino lá pra ver se ele se sentia melhor. Mas foi só choradeira. Perguntou ao pai quando iria sair de lá. O pai diz que vai demorar um pouco ainda. A última decisão dava a ele 11 anos de detenção – foi um dia em que a mulher chorou muito. Mas o homem estava forte desta vez: sabe como é o judiciário. Tudo pode ser revertido.

E ainda tem o ex-marido dela. Semana passada, sumiu um irmão dele. Era usuário de drogas. Depois deixaram um bilhete avisando que estava morto e indicando o local do corpo. O ex-marido não teve coragem de ir à delegacia. Também não teve coragem de reconhecer o corpo. Não teve coragem de fazer nada. Ligou para a ex-mulher e quis saber se ela não podia ir ajudar. E ela foi. “O que você é do morto?”. “Ex-cunhada”. Que lugar horrível é o IML, ela diz. Teve que reconhecer um homem que não tinha mais rosto.

A mulher precisa de uma geladeira. Vai pedir para sua prima, que eu conheço. Não tem coragem. Quer saber como falar. Pergunta se eu tenho orado por ela. Sim. Tem ainda o outro filho, já moço, que anda muito preguiçoso. Nunca arruma o quarto. Mas ele se defende: não usa drogas e vai à igreja. O filho mais velho trabalha na Feira dos Importados – ela suspeita que não goste de mulher. Já decidiu: eu vou me casar com a sua filha. Ela tem 18 anos, é uma boa moça, inteligente, cursa Tecnologia da Informação lá na Upis. O problema dela é só falta de emprego. “Imagine só, vou ter netos com sobrenome chique. Fendrich…”. Ela pediu pra anotar meu sobrenome num papel. Aprendeu a falar. Diz para eu escrever a história da vida dela. Um romance, algo assim. A gente vai ficar rico.

Mas ai de nós! Eu só sei fazer crônica.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 11/08/2011
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