Inadaptado

Por inúmeros motivos, é uma merda ser classe média. E, esta semana, descobri mais um deles: em São Paulo, a gente, assim que ganha uma graninha a mais, já desiste de ir trabalhar de metrô e ônibus e vai de carro. O classe média não tem consciência politicamente correta, não liga pro meio ambiente e não está nem aí para o problema do tráfego super congestionado. Afinal, nada ele tem a perder. O problema é quando o carro quebra e ele tem que voltar, após alguns anos, a usar o transporte público, como foi meu caso.

Nunca fui muito fã de usar ônibus como meio de transporte. Entrar num desses e caminhar por aquele estreito corredor com mala de notebook na mão, celular no ouvido é para mim tão constrangedor como se eu tivesse que caminhar feito uma top model na passarela. A sensação é realmente esta, com a diferença que, ao invés de socialites e fotógrafos me vislumbrando, tenho o povão, a gente mal dormida, mal comida, quero dizer, mal alimentada, mal cheirosa. Ou cheirosa demais.

Sinto os olhos, discretos e indiscretos, percorrerem meu corpo aprovando ou reprovando minha roupa, minha postura, minhas olheiras, meu cabelo. O mais engraçado é quando você pega alguém te analisando através do reflexo do vidro das janelas e portas. Como detesto ser encarado por estranhos, a vontade que tenho é a de dizer, sussurrando: “Eu sou realmente lindo, não? Eu me comeria.” E ainda poria a língua pra fora, obscenamente. E tem também os amores breves de busão: não passou um ponto de meu trajeto sem que eu arrumasse um novo. Sou viciado neles. Crio todo um cenário romanesco envolta daquela menina nerd com uma pasta A3, mesmo que nela ela esteja carregando os ossos do pai.

Não sei nem qual era o nome ou número da linha que utilizei, mas, durante minha fatídica viagen, aprendi quatro coisas importantíssimas para o destreinado jornaleiro de lata de sardinha:

1° lição: Jamais pergunte o preço da passagem. Isso é um acinte. É praticamente uma blasfêmia proferida em dialeto banto. Aliás, já é uma vergonha você não ter um bilhete único. Se você não sabe o preço, jogue uma nota de cinco para o cobrador, e seja o que Deus quiser. Não façam como eu, pois eu perguntei o preço e tive a sensação que seria chutado do coletivo dada a cara feia da cobradora beiçuda e com cabelo de repolho que me respondeu o valor com os dentes cerrados.

2° lição: Quando você estiver morrendo de medo de ser assaltado só por estar num transporte público (outra imbecilidade do classe média), e estiver segurando seu notebook e seu celular como se fossem seus filhos e alguém soltar um berro na sua orelha, calma, “espere um pouco antes de se assustar”, isso não necessariamente será um assalto. Como eu pensei que fosse. Fiquem atentos: É que, apesar da assepsia, do minimalismo Kassabiano, ainda há pedintes, vendedores ambulantes e poetas de miolo mole dentro dos veículos que, do nada, começam a gritar declamando poesias, pedindo dinheiro ou vendendo seus produtos.

3° lição: Saiba escolher ao lado de quem você vai se sentar. De preferência, faça sua viagem em pé. Mas, se não aguentar o cansaço, sente ao lado de qualquer um, menos ao lado do office boy. Estes meninos (que tão na correria, véio) ultimamente deram de portar uns celulares monstruosos que parecem ter saído do filme dos Transformers. São umas engenhocas feitas na China que comportam 27 chips de operadoras até de Bangladesh. Que neles funciona mesmo, só o som. Ô som forte de merda! E, olha, ouvir Racionais no último volume em plena manhã de segunda me fez sacar, na hora, dois prozacs. Sabe oque é? Classe média é muito sensível.

4° lição: se você tiver passado pelos testes acima, certamente estará apto para encarar o mais difícil de todos: o desembarque.

Se perceber que seu ponto de desembarque se aproxima, levante-se imediatamente, mas, espere aí, levante enquanto o ônibus estiver parado num farol. Com a tamanha delicadeza e maestria dos motoristas da cidade, levantar com o ônibus andando pode ser catastrófico e seu smartphone (ou chaves, sua caneta Mont Blanc, sei lá) pode voar de sua mão ou de seu bolso ou bolsa e ir parar embaixo do banco, onde aquela simpática senhora está adormecida. Acreditem, não é nada prazeroso estar com a cabeça entre as pernas de uma senhora enquanto ela desperta, sem nada entender.

Pois bem, uma vez em pé, dirija-se à porta de desembarque, que é a de trás do ônibus, jamais a da frente para você, working class paulista, que não é aposentado, gestante ou inválido. Inválido você vai ficar se sair pela da frente. Porém, não pense que o ônibus sabe que você vai descer. Não, o pobre motorista, não sabe. Não adianta gritar pedindo para ele parar também, esse meio não é polido, tampouco eficaz. Numa circunstância dessas, você tem que procurar o que? O que, heim, crianças? - A cordinha! - Resposta eeeeeerrada! Quando você, que parou de andar de ônibus no final dos anos noventa, avistar seu ponto e começar a tatear o teto do ônibus, suando e dizendo para si mesmo: “where’s the fucking cordinha para dar o fucking sinal?”, (afinal, cockney paulista arrota anglicismos com sotaque do Supla até em pensamento), lembre-se disso: agora, não há mais cordinha, e sim um miserável de um botão no cano onde você se segura. E isso aprendi graças à simpática cobradora repolhuda, quando eu, com aquela cara de ondetáacordinha, já em cima do ponto onde queria sair, olhei pra ela, e ela disse com os dentes cerrados novamente: “apérrti û bûtaum!”

E, para finalizar, quando saltar do bicho, preste atenção e não pule feito uma bailarina no cio - não, você não é a Natalie Portman - para , então, se espatifar no chão. Como eu me espatifei. Isso pode fazer todos rirem de sua cara. Inclusive a cobradora repolhuda.

Otto M
Enviado por Otto M em 13/08/2011
Reeditado em 16/08/2011
Código do texto: T3158156
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.