Quem não lê não escreve

Entre os anos de 2014 e 2017, o governo manteve equipes de especialistas em mais de três mil municípios brasileiros, com a missão de avaliar as consequências da falta de professores alfabetizadores, de Língua portuguesa e Literatura brasileira nos ensinos fundamental e médio do país. Os dados foram coletados diariamente nas escolas, ruas comerciais, órgãos públicos, rádios, imprensa, etc., e revelaram uma realidade sombria: 98% dos municípios analisados foram reprovados.

Nessas cidades, os especialistas identificaram uma tendência marcante: um paulatino retorno à oralidade. Por falta de professores, tanto nas escolas públicas quanto particulares, e também por viverem em culturas fortemente marcadas pelo desprezo à leitura e à interpretação de textos escritos, as populações dessas cidades, na sua grande maioria, não conseguem mais entender a linguagem escrita.

Num dos municípios investigados, um dos especialistas esteve em um grande supermercado e presenciou uma cena que ilustra bem essa situação: no lugar dos tradicionais avisos escritos indicando onde estão os caixas preferenciais para gestantes, pessoas com crianças no colo e idosos, a direção do supermercado teve que colocar pequenas caixas de som reproduzindo a informação pela voz de uma locutora de rádio.

Nos bancos e repartições públicas, a maioria das pessoas não consegue preencher um simples formulário: não sabem o que é nacionalidade, estado civil ou grau de instrução; e mesmo quando elas conseguem ler o que deve ser preenchido, precisam que o funcionário esteja por perto para repetir, em voz alta, o que se pede:

“Aqui é pra mim escrever o meu nome?”.

“Isso mesmo, senhor. Está escrito aqui: NOME”.

“E aqui é pra mim colocar o lugar onde eu moro?”.

“Isso mesmo, senhora: o seu ENDEREÇO”.

Nas escolas, a maioria dos professores comete erros de português absurdos no quadro e não consegue elaborar uma simples questão de prova que seja clara, optando, quase sempre, por avaliações orais [a maioria com questões confusas, em que qualquer resposta dá direito a uma boa nota]. Os mestres não conhecem um único livro que possa ser indicado e, depois, trabalhado em sala de aula com os alunos [as bibliotecas locais, quando existem, têm poucos leitores, cada vez mais raros].

Nas faculdades, os professores, por não dominarem bem o português, não conseguem elaborar questões abertas que sejam capazes de estimular o senso crítico e analítico dos alunos, quase completamente atrofiado pelos anos passados no ensino fundamental e médio. Os poucos professores que conseguem cobrar o que precisa ser cobrado, em questões abertas bem elaboradas, são obrigados a explicar oralmente para a turma o que querem com as questões; e mesmo assim, quase sempre são acusados pelos alunos de serem péssimos professores, sendo também, com frequência, alvos de abaixo-assinados exigindo a sua substituição.

Nos fóruns, as petições dos advogados reúnem o maior número de atrocidades e absurdos cometidos contra a língua portuguesa que os especialistas do governo puderam encontrar. Em algumas cidades, juízes, preocupados com o problema, promoveram cursos de português, leitura e interpretação de textos para os advogados, mas na grande maioria dos municípios, nenhuma iniciativa nesse sentido foi tomada.

Infelizmente, na maioria das faculdades de Direito, os professores facilitam ao máximo a vida dos alunos nas provas, com questões de múltipla escolha idênticas às de semestres passados, que os futuros advogados marcam sem nem se darem ao trabalho de ler. Escrever? Raramente. E quando escrevem, são textos sem sentido, já que a maioria dos alunos não domina o vocabulário básico para se expressar de forma minimamente aceitável na língua portuguesa.

Mas esses poucos professores exigentes, que cobram análise e reflexão, acabam sendo obrigados a passar também os alunos medíocres, para não perderem o emprego, pois a mensalidade do cliente-aluno, nas grandes empresas que se tornaram as faculdades particulares, vale ouro. O resultado disso são as aprovações sucessivas nas disciplinas e a formatura de alunos semi-analfabetos que, aos poucos, vão engrossando as fileiras de bacharéis frustrados, que nunca serão aprovados na prova da OAB, ou que, ao serem aprovados nesta prova [por milagre], abarrotam os fóruns com petições dignas de dó.

Outra grande catástrofe é a imprensa. Nos jornais locais, as notícias são divulgadas num português rasteiro, cheio de erros [textos que se dizem “populares”, mas que envergonham qualquer autor genuinamente popular, já que não passam de um monte de frases sem sentido, cheias de erros vergonhosos].

Isso tudo é resultado do descaso com a educação básica e do desprezo à leitura no país. Formam-se professores, advogados, jornalistas, publicitários e outros profissionais que não lêem, e que, por isso, não conseguem escrever. E isso começa na infância. Os pais, muitas vezes, não compram livros para seus filhos porque acham caro, mas não conseguem passar um final de semana sem cerveja em casa [e trocam de carro com frequência, fazem festas, etc.]. Os jovens, criados em um ambiente sem leitura, passam a valorizar excessivamente a posse de objetos que simbolizam poder e riqueza, como carros e roupas de marca, e desprezam objetos que, no ambiente em que vivem, muitas vezes simbolizam a caretice e a vida sendo desperdiçada, como os livros. Essa é uma questão cultural difícil de ser resolvida.

Uma luz no fim do túnel talvez esteja na conscientização dos estudantes, sobretudo os de nível médio e superior. Através deles, mudanças culturais podem acontecer, principalmente em casa, onde caixas de cerveja ou festas de arromba podem ser substituídas, de vez em quando, por livros; e na escola, onde, ao invés de fazerem abaixo-assinados para tirar professor que exige deles muita leitura e textos bem escritos, que cobra o que precisa ser cobrado [às vezes até com muito rigor, como a vida costuma fazer com os profissionais depois de formados], eles podem, ao contrário, valorizar esse professor, e não aquele que facilita tudo, que não corrige os trabalhos e aprova todo mundo, na maior irresponsabilidade.

Errinhos de português todos nós cometemos. Até grandes escritores erram [para isso as editoras contratam revisores]. Mas não estamos tratando aqui de simples errinhos. Infelizmente, o que se observa no país é um quadro generalizado de analfabetismo funcional, muito mais grave do que se imagina, e que, infelizmente, não é reconhecido pelas autoridades, muito menos pelos próprios analfabetos funcionais.