Iniciação
 
 
                Mais um domingo sem receber meu jornal. Não sei o que está acontecendo com o entregador de jornais que não entregou o meu jornal nos últimos dois domingos. Poderia ter reclamado, mas nem sei por onde anda o número do telefone da Distribuidora e além do mais os jornais andam tão ruins que nem estão fazendo falta.
 
                Escrevi esse parágrafo domingo à tarde, mas o assunto não foi para frente. Na segunda, minha mãe entrou em meu quarto, trazendo o jornal nas mãos. Onde estava? Perguntei em pensamento. Minha mãe respondeu ao meu pensamento expressando o seu em voz alta: Valéria estava saindo quando olhou para cima e o viu no telhado. Bem explicado, não o telhado principal da casa, mas o que cobre a varanda do primeiro andar. Telhados não são lugares usuais para se lançar um jornal. Temos um portão de entrada, vazado, e que dá para as escadas que conduzem a varanda. Temos uma garagem ampla, também com grades onde se pode jogar o jornal; temos a própria varanda, supostamente mais fácil de ser alcançada do que o telhado. Mas fazer o que? Apenas imaginar.
 
                Deixei o jornal na beira de minha cama e ao acordar bem cedo, nesta madrugada, peguei um caderno para ler. E lembrando o acontecido imaginei-me sentada no telhado da varanda, lendo, com meus dois pequenos, o Joca e o Pongo assentados junto a mim. Lia um artigo que suponho também ser altamente imaginativo: No Rastro de Orson, de Ana Clara Brant, onde a autora escreve sobre um documentário que se propõe revelar os mistérios que envolvem a visita de Orson Welles a Minas Gerais, geradora de lendas e dúvidas. E ali, na primeira página, uma reprodução gráfica do rosto de Welles, fumando cachimbo. E do cachimbo saia uma fumaça formada pelas palavras da articulista. Nem cheguei a ler a reportagem completa, só o texto enfumaçado. Um leve torpor, talvez causado pelo sono mesmo, talvez causado pela fumaça do cachimbo de Orson, misturou imaginação e realidade. Os pequenos latiam tanto, chorando desesperados que me sobressaltei julgando cair do telhado – ainda bem que não era real. Eu estava em minha cama, o jornal caído sobre mim e os pequenos gemendo e chorando do outro lado da porta da cozinha. Levantei-me pronta a ir atendê-los quando me lembrei do Encantador de Cães: seu cão não tem o direito de determinar a hora em que você se levanta. Então resisti e me preparei aos poucos: colocando a minha calça de ver os pequenos e meus sapatos, fiz tudo metodicamente.
 
              Depois da recepção barulhenta em que me mantive impassível, até coloca-los para fora da área de serviço, preparei a comida deles e fui alimentá-los.
 
              Joca desenvolveu uma fobia interessante: tem medo da vasilha em que coloco o alimento. Eles estavam em um dos corredores laterais da casa e eu me sentei em uma bancada fronteira. Quando me viram, vieram disparados. As duas vasilhas colocadas no chão, Pongo atacou a sua, prontamente. Joca não, pulou para o meu lado e se colocou em posição de comida: assentado. Olhava para mim e olhava para o prato. Então busquei o prato e tentei colocar junto a ele. O pavor foi tamanho que ele foi se afastando e só não caiu da bancada porque eu o segurei. Coloquei novamente o prato no chão e deixei que a fome aumentasse, tentando ser dura, uma verdadeira líder da matilha. Ele continuava, olhando para mim e para o prato, com olhos de fome. Então de repente ele começou: lambia minha mão e olhava para o prato. Eu pegava o prato e trazia, ele se afastava apavorado. Eu punha o prato no chão e ele recomeçava: lambia minha mão e olhava para o prato. Então eu estendi a minha mão e em vez de trazer o prato, trouxe a comida – e assim ele comeu tudo, em minhas mãos. E depois, barriga cheia, levantou as patinhas traseiras e lambeu meu rosto. E eu, que decidira ser uma eficiente chefe de matilha descobri que não nasci para isso. Vou acabar mesmo é sendo mãe de cachorro.