ÚLTIMA BATALHA - CRÔNICAS HISTÓRICAS

Como ele estava bonito! E lá se ia já um bom tempo quando ele entrou na igreja para que nos uníssemos finalmente em matrimônio. Ele relutou muito para não se casar com o “soldado Medeiros”. Guardei nosso amor em meio a tantas batalhas e agora com o nascimento de nossa pequena filha, guardarei junto com a memória de meu pai e de minha mãe que se foi tão cedo de mim, me forçando a viver uma vida de rejeição e incompreensão por parte de sua nova esposa. Contemplando os pequenos olhinhos da minha menina, educá-la será minha última batalha. A grande alegria de minha vida é saber que agora estamos num país livre, liberdade esta do qual muito me orgulho de ter contribuído.

Fico aqui acalentando minha filha e me fazendo interrogações tantas sobre ela. Será que ela vai ser tão rebelde como a mãe? Quero que ela estude e que aprenda a ser uma mulher independente. Eu aprendi o que julguei necessário para a vida. Minha criança vai ser livre e vai poder viver num lugar melhor e sem as batalhas constantes que tive que enfrentar. Seus olhos são espelhos que refletem a mim mesma nos campos da vida, nas batalhas pela consolidação da independência. Ainda consigo sorrir ao lembrar o espanto de todos ao perceberem que eu era uma mulher. Nenhuma tinha entrado para o exército até então. Eu fui a primeira. Eu não podia me calar diante das guerras e da negativa dos portugueses em nos conceder a já proclamada independência. Quando arrasaram minha cidade pela adesão à independência e ao reconhecimento de nosso imperador como legítimo, não tive dúvidas em pegar armas. Todas as famílias deviam ajudar. Meu pai não tinha um homem e eu fui fazer as vezes de um. No início até pensei em não lutar, mas tinha coragem de sobra, sou uma mulher que aprendeu desde cedo a manipular armas e montar cavalos. Eu fui muito mais corajosa e valente que muitos que ali lutavam.

Meu pai, pobre homem, nem em sonho ele imaginava que eu iria me alistar. Ele na verdade nunca se preocupara com minhas intenções, pois mulheres nunca participavam mesmo. Mas, como não há mal que não tenha remédio cortei meus cabelos e me alistei como Medeiros. Não durou muito meu disfarce. Duas míseras semanas e meu pai atrás de mim, enfurecido. Mas pela liberdade eu luto e não temo. Deixo essa lição para a minha criança e para as mulheres que lutaram cada uma a seu modo. Esse foi o meu. Disciplinada, destemida e entusiasmada fui aceita mesmo sendo mulher. Meu noivo ficou na cidade. Nem imagino o que se passou na cabeça dele. Também não faz mal, nós nos casamos tempos depois e nosso amor continuava vivo, tão ou mais vivo como antes.

Esta guardado para ela o meu saiote, adereço que eu mesma fiz no meu uniforme do exército para me diferenciar dos homens. Foi com uma alegria irradiante que vi o major me aceitar, sob os protestos de meu querido pai. Daí em diante foi uma batalha após outra. Vivi intensamente a liberdade e a experimentei dentro de mim tal qual a noite de luar experimenta a beleza de um brilho que quebra sua escuridão. Parece que ainda ouço, geralmente à noite, o barulho da multidão que me saudava em Salvador quando conquistamos definitivamente esta terra para o Brasil. Foi o dia mais feliz da minha vida até então. Fiquei sabendo que meu pai naquele dia dera um sorriso, embora contido para não expressar a felicidade e o orgulho da filha que ele ainda não havia perdoado pela audácia. Meu noivo, disseram-me, contava glórias e cantava vivas pela sua amada que lutava bravamente. Nesse dia tive certeza que ele me esperava, que ele me amava acima de tudo, e que estava do meu lado, embora também nunca tenha se manifestado a favor de meu ingresso no exército.

Foram sequência de tempos felizes. Dom Pedro I, imperador do Brasil, recebeu-me pessoalmente. Ele estava com um sorriso largo no rosto e abraçou-me como se fosse eu da família imperial. E penso que no fundo eu era mesmo, pois afinal estive do lado dela impreterivelmente, arriscando minha vida e me colocando de frente com aqueles que mais amei neste mundo. O distintivo imperial Ordem do Cruzeiro esta ostentado ali, naquela parede, como testemunha viva de minha vida e de minha coragem, como a perpetuar a vida da primeira mulher soldado do Brasil. Ficará para minha filha, com todo orgulho de mãe. Queria mesmo que Gabriel Pereira, a quem vou amar eternamente estivesse aqui comigo para partilhar da felicidade de observar o sorriso lindo de nossa criança. Tão pouco tempo juntos, mas inesquecíveis momentos ao seu lado. Meu Gabriel, sinto minha vida também fluindo para fora deste corpo e a única alegria que tenho é a certeza, pela minha fé, de que vou reencontrá-lo para sempre. Todos os meus antepassados já se foram e eu fiquei aqui condenada a educar o fruto de nosso amor, sozinha. Tenho que redobrar minha coragem e multiplicar minhas forças para vê-la crescer e ser feliz. Sinto-me triste agora em temer minha morte e deixar criança nossa filha. Em Feira de Santana não obtive progresso com a herança de meu pai e vivo aqui na cidade que outrora me aclamou como heroína nacional.

Aqui em Salvador, passo os dias últimos relembrando as tantas idas e vindas dentro deste que, agora, é um país independente. Ainda guardo na alma as imagens que passaram por estes olhos cansados e que hoje se recusam a mostrar a beleza que paira nesta cidade magnífica. Ultimamente tenho sentido cansaço imenso da vida e uma desilusão por estar aqui tão esquecida e tão inerte. Em nada lembro a mulher guerreira, com uniforme militar que foi descoberta pelo pai e que ousou desobedecê-lo num mundo em que o domínio dos homens ainda impera absoluto. Hoje sou uma mulher solitária e esquecida. Poucos são os que me reconhecem ou conhecem minha história. Não que eu deseje ser lembrada com todas as honras do mundo, mas também me sinto melancólica pelo esquecimento de tudo o que fiz pelo meu país. Meus olhos já não enxergam como outrora e muito do que vi só me resta na lembrança.

Restamos minha filha e eu. Foram-se meus pais e meu amado esposo. Todos partilham da felicidade eterna que também hei de partilhar. Por ora, a heroína aclamada e condecorada, Maria Quitéria de Jesus, fica imêmore nesta cidade grande, distante de tudo e de todos. Talvez também distante de mim mesma. Saudade eu tenho mesmo é dos gritos dos campos de batalha e do sangue que corria quente nas veias em busca de um ideal para se viver. Talvez tenha sido esta a grande motivação de minha luta. A liberdade do meu país era também a minha liberdade pessoal. Desde que minha mãe se fora e que meu pai contraíra outro matrimônio, eu me sentia dentro de uma prisão a mim imposta. O céu azul como limite e os campos de batalha como trabalho, fizeram de mim uma mulher livre, que voava na sua imaginação e relembrava a todo tempo o seu amor. Nutrida pela coragem fui buscar meus objetivos. E eu os alcancei. A coragem ainda tenho, mas a idade retirou-me as forças. Restam as lembranças. Essas sim são eternas. Eu parto como alguém que não será esquecida e deixo para trás um pouco de mim, Luísa, minha pequena que embala meus sonhos e que guardará as lembranças de uma mãe carinhosa e terna, diferente talvez do que a história dirá de mim, um dia.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 17/08/2011
Código do texto: T3166094
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