A mão errada

Antes de mais nada, preciso confessar uma coisa: eu escrevo com a mão errada. E sempre foi assim. Ainda no jardim de infância, eu usava a mão esquerda para segurar o giz de cera. Meus pais são destros, e a chance de terem um filho canhoto beirava os 2%. Tive, é verdade, a felicidade de nascer numa época em que pessoas como eu não precisam mais morrer na fogueira. Mas isso não significa que a minha vida tenha ficado mais fácil. Os problemas começam já pela manhã: se estou mal-humorado, alguém me pergunta: “Levantou com o pé esquerdo, foi?”. E, ao longo do dia, sempre existe alguém pronto a me questionar se eu não fizer algo direito. Eu poderia suportar muito bem tudo isso se, na vida prática, o mundo estivesse preparado para pessoas como eu.

Não está. E isso vai muito além das tesouras e dos abridores de lata. Um dos meus maiores medos na infância era escrever no quadro-negro. Havia um risco enorme de eu apagar com o canto da mão tudo aquilo que ia escrevendo. Faça o movimento e perceba, você que é destro. Isso sem falar naquelas cadeiras que são mesa ao mesmo tempo: são feitas para escrever no lado direito. Até existem algumas, raríssimas, em que a mesa fica no lado esquerdo. O grande problema é que, quando um canhoto encontra uma dessas, geralmente já existe um destro sentado nela.

Existem ainda, em repartições públicas e bibliotecas, aquelas canetas amarradas a um barbante. Adivinhem de qual lado elas costumam estar amarradas? É preciso fazer verdadeiros movimentos de contorcionismo para conseguir escrever – talvez seja por coisas assim que os canhotos costumam ter grande habilidade.

Pra piorar, existem estatísticas mostrando que canhotos morrem em média nove anos antes que os destros. Isso é uma grande balela. Existem menos canhotos que destros, e se acontecer de um deles morrer ainda na infância, por exemplo, já puxa a média de todo mundo lá para baixo. Por isso é tão importante que os canhotos tentem sobreviver.

Nos esportes, há algumas vantagens. Dizem que tênis favorece os canhotos. Uma vez participei de um torneio de tênis de mesa e ouvi de um adversário: “Uau, ele é canhoto”. Era como se eu projetasse raios laser. Impunha respeito. No futebol, poucas coisas são mais valorizadas do que um meia-esquerda. Ao mesmo tempo, os comentaristas costumam alertar sobre o risco de colocar dois canhotos para jogar um ao lado do outro – é possível ter 11 jogadores destros, mas dois canhotos certamente se atrapalharão, trombarão, escorregarão, estragarão tudo. Da minha parte, tenho a vantagem de chutar com os dois pés – um de cada vez.

Um verdadeiro canhoto costuma citar uma lista de celebridades que também são – é uma tentativa de provar que também servimos pra alguma coisa. Paul McCartney é o mais citado. E também Einstein, Charles Chaplin, Da Vinci, Machado de Assis, Jimi Hendrix, Beethoven, Michelângelo, Gandhi, Picasso. É uma lista de dar inveja. Fidel Castro também – esse, se não fosse canhoto, provavelmente deceparia a mão direita apenas para poder sê-lo. É claro que ninguém se lembrará de Adolf Hitler e Georg W. Bush.

Aliás, não existe nenhuma evidência de que o próprio Jesus Cristo não fosse canhoto. E conversando com outro canhoto – é bom que os canhotos se unam para conversar sobre o problema, como os alcoólicos, por exemplo – cheguei a uma descoberta que, afinal, me tranquilizou: se Deus escreve certo por linhas tortas, só pode mesmo ser canhoto.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 19/08/2011
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