O Cheiro
Pela porta entreaberta o odor escapou, era azedo, e já curtia de alguns dias, atravessou a pequena cozinha e atingiu a sala, onde os três viam a tela.
- Sentiu isso? – perguntou o primeiro para o segundo.
- O que? – indagou o segundo.
- Esse cheiro, ora, não sente? – o primeiro desgrudou os olhos da tela e os colocou no segundo.
- Sinto cheiro nenhum – responde o segundo ainda com os olhos na tela, depois se dirige ao terceiro – está sentindo?
- Não, sinto nada – o terceiro disse com desdém.
- Como não sentem? É cheiro ruim, de carniça – explicou o primeiro, olhando para os outros dois.
- Sinto nada não, deve ser sua imaginação – desdenhou o segundo.
- Sabe o que pode ser, vi esses dias na TV, uma doença, quando você ouve algo pode ver imagens, ou sentir cheiros – interessou-se, um pouco mais, o terceiro, que sonhava em medicina se diplomar.
- Que doença mais estranha é essa? – se aturdiu o segundo, tirando finalmente os olhos da tela.
- Nome, lembro não, mas sei que era isso – explicou o terceiro.
- Ora, onde viu isso homem? – riu-se o segundo – Coisa mais estranha, pois, sentir o que ouve.
- E não é? Também achei – disse o terceiro pensativo – Onde vi não lembro também, mas vi, juro que vi.
- Nunca ouvi falar sobre essa coisa não – disse o segundo voltando os olhos para a tela.
- Doença ou não, continuo a sentir – reclamou o primeiro.
- Ainda não sinto nada, mas se sente, vá ver o que é então – disse o terceiro voltando também seus olhos para a tela, agora que acabaram as propagandas comerciais.
- Eu não, o programa começou, vá você – resmungou o primeiro.
- Ora, você que sente e eu que tenho que ver – indignou-se o terceiro.
- Calem-se os dois, o programa já está passando, hoje está interessante – reclamou o segundo.
- Mas não consigo me concentrar com esse cheiro – implorou o primeiro – vá, um dos dois, ver o que é.
- Vá você, onde já se viu – se indignou o segundo.
- Não posso, sabe que não posso – resmungou o primeiro.
- Não pode por quê? – perguntaram terceiro e segundo, juntos.
- O médico disse, lembram-se, a dois meses, não posso fazer esforços – explicou o primeiro.
- Que esforço vai fazer para ir ali? – o segundo se transtornou.
- Olfativo, se já sinto o cheiro daqui, imagine de lá. Vocês não sentem, não terão problemas.
- Faz sentindo – disse o segundo – então vá você – apontou para o terceiro, que desgrudou os olhos da tela e o olhou indignado.
- Não posso.
- Pode não, por quê? – perguntou o primeiro.
- Oras, sabem que o programa de hoje vai ser sobre depressão, minha mãe sofre disso, pois então tenho que assistir – explicou.
- Não, sua mãe tem que assistir, não você – falaram o primeiro e o segundo juntos.
- Minha mãe ainda tem televisão de vinte polegadas, as melhores imagens ela perde, tenho que ver para explicar tudo melhor para ela, se não ela entende nada – falou o terceiro com simplicidade – vai você – apontou para o segundo.
- Não posso – disse voltando os olhos para a tela.
- Não? Por quê? – perguntaram primeiro e terceiro, juntos.
- Minha visão – respondeu com simplicidade.
- Ora, o que tua visão tem que você não pode levantar para ver de onde vem o cheiro? – perguntou o primeiro.
- Miopia, teria que forçar minha visão para enxergar um cheiro que nem sinto, não posso ir ver – respondeu com desdém o segundo.
- Espere, falta um – olhou o primeiro em volta.
- Está ai a solução, quando ele voltar ele vê o que é! – exclamou o segundo.
- Pra mim tudo bem – disse o terceiro.
- Concordo – disse o primeiro.
O que faltava estava no quarto, deitado na cama, de pulsos cortados.