CAUSAS E CONSENQUENCIAS

Causas e consequencias

No inicio do ano, a convite de um amigo, fui com outros três escritores, visitar a Fundação Casa da Vila Maria. (antiga FEBEM). Nosso compromisso, a principio, seria participar da inauguração da nova biblioteca e lá, cada um de nós, leria um conto.

Logo que entrei, a sensação era uma mistura de curiosidade, suplício e medo. Enquanto esperávamos na biblioteca eu percebia que a mesma apreensão estampava o rosto de meus colegas. Estávamos sentados em quatro cadeiras dispostas diante de vinte outras cadeiras exatamente iguais. Logo os meninos foram entrando em fila indiana, todos de cabeça baixa e com as mãos para trás e no mais absoluto silêncio foram ocupando os lugares a nossa frente.

Depois de alguns eternos e mudos segundos o diretor da fundação entrou e nos apresentou. Só então eles levantaram as cabeças e pudemos observar os olhares atentos e ao mesmo tempo distantes da nossa presença. Feitas as apresentações e cortada a fita vermelha que simbolizava a abertura das prateleiras, cada um de nós leu um trecho de grandes clássicos da literatura e em seguida um pequeno conto autoral. Escolhi um conto de humor, voltado para o público adolescente, e a cada passagem eles riam como crianças, tão inocentes quanto qualquer outra ao nosso redor. Logo depois vieram as perguntas, das mais variadas; idade, livros, filhos, leituras, experiências... Eles pareciam querer saber tudo a nosso respeito e com demasiada pressa. Quando o diretor anunciou o fim do bate-papo, um dos internos se aproximou com um caderno nas mãos:

- Eu escrevi alguns poemas, será que posso ler pra vocês?

Os outros ficaram em silêncio. Iam se levantar, mas diante da questão do colega, voltaram a sentar como se esperassem a resposta de uma importante sentença que poderia mudar suas vidas. Olhamos para o diretor (parado na porta). Os meninos fizeram o mesmo, de maneira mais discreta. O diretor estendeu os braços e abriu um sorriso, como se dissesse: “São vocês que devem decidir”.

- Claro. Pode ler, vai ser um prazer.

Foi a resposta de um dos colegas, que logo recebeu a aprovação sincera de todos nós.

O menino então pigarreou, olhou para os colegas de confinamento e confiante passou a ler os versos que falava de amor. Quando terminou foi aplaudido por todos e antes que o ambiente de alegria e orgulho pudesse esvaecer, outros pediram a palavra. Logo a coisa tomou forma de sarau, e os meninos pediam licença para ir até seus alojamentos buscarem cadernos, folhas e livretos artesanais feitos por eles nas poucas oficinas de poesia que lhe foram ministradas. A maioria dos textos eram muito próximos das letras de Rap e falavam das disparidades sociais, violência, política, etc... Porém, outros tantos exaltavam o amor, a poesia, e alguns poucos eram reproduções de orações e ladainhas religiosas.

Depois de quase duas horas ouvindo os mais variados textos e observando diferentes características de entonação de voz, e principalmente de visões diferentes de mundo, um garoto que parecia ser o mais aguardado pelos colegas, chegou até nós e pediu para representar um poema de sua autoria. Não teríamos como negar, e nem tínhamos intenção de negar nada àquela altura.

Ele então saiu da biblioteca, ficou alguns segundos de lado de fora e depois entrou, vestia uma touca que lhe cobria os olhos e puxou a camisa do uniforme de forma que a gola lhe tampava a boca. Ele entrou agitado, encarou-nos um a um muito próximo. Respirava ofegante e olhava desconfiado para todos os lados. Baixou lentamente a gola da camisa e subiu a touca de modo a lhe deixar os olhos à mostra. Sua fisionomia era de ódio, medo, rebeldia... Chegamos a ficar assustados. De repente ele parou no meio da sala e começou a varia a entonação de voz:

REVOLTA! / REVOLTA? / REVOLTA, MANO! / QUANDO EU SAIR DAQUI, REVOLTA! / REVOLTA, EU SÓ PENSO NISSO! / REVOLTA... E de repente sua expressão foi mudando, seu semblante não parecia mais o mesmo, seu olhar era de uma ternura incomensurável. E ele então continuou: REVOLTA... RÊ-VOLTA... RÊ, QUANDO EU SAIR DAQUI, POR FAVOR VOLTA! RÊ... RÊGIANE, POR FAVOR, VOLTA, EU TE AMO!

Sob nossos aplausos ele saiu. Agradeceu com lágrimas nos olhos nossa atenção. Depois voltou para conversar. Participou de oficinas de teatro e poesia na Fundação. O diretor nos contou que ele sempre foi o aluno mais empenhado nos cursos voltado para as artes. Ele nos contou sobre suas leituras, não eram poucas, começou a ler mais por falta de ocupação, mas depois foi pegando gosto, especialmente pelos textos teatrais... Estavamos diante de um grande potencial artístico.

No final da visita me comprometi com o diretor a voltar para ministrar uma oficina de Texto em Prosa e antes de sair perguntei a ele:

- O que aquele garoto fez para estar aqui?

Ele me respondeu:

- Marcelo, nunca me faça essa pergunta a respeito de qualquer um dos meus garotos... Agora isso não importa. Além do mais, se eu disser a você o que ele fez para estar aqui, é muito provável que você não volte para ministrar a oficina.

Marcelo Nocelli
Enviado por Marcelo Nocelli em 11/09/2011
Código do texto: T3213522
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