O homem do café

Mário de prata. Assim era denominado o homem que servia cafés. Ele habitava em seus redemoinhos de pedra, entre gigantes e imaginativos quadros de Picasso, colados dos sonhos de tv, a sala de imaginativa desordem, os quadros de artistas consagrados, servia café em frente da usina, no turbilhão onde as bicicletas se encontram numa paradisíaca parada de ônibus.

Se havia para onde voltar seria o lugar onde colocava sua máquina de fazer café todos os dias. Um lugar escondido de todos. Acordava às cinco da manhã com sua mulher imaginária e esquentava o fogo. A lenha coletada pelas ruas. Pedaços de paus fortes, tiravam a madeira dos esqueletos dos sofás jogados, base de geladeiras, pernas de cadeira, livros velhos, tentava antes decifrar seus códigos, mal sabia soletrar, via as páginas vazias de conteúdo e milhões de letrinhas desconexas.

Tudo iria para o fogo. Sem nenhum protocolo. E faria dali seu melhor café. Pegava sua bicicleta cargueira e punha-se a pedalar pelas ruas mais difíceis. Ficava olhando distraidamente (quando o sinal abria para os carros) para as paredes das casas, para suas janelas porque gostava de sentir-se em casa. As janelas tinham sensações familiares e eram como abrigos perfeitos, as janelas em azul, mesmo fechadas, traziam porções de ternura que fugiam à realidade intranquila das ruas e vida das pessoas. As janelas azuis acompanhavam varandas e porções de quintais com jasmineiros floridos.

Ia para sua parada vender o café na usina. A usina tinha algo mais de cem anos, e suas letras ainda vivas, feitas num contorno de ferro em formas itálicas, trazia o cheiro de sua essência de usina. O próprio nome usina esvazia sua forma moderna e nos traz um desejo de lembrar-se de algo que se perdeu, emas que ainda está no ar, naquele pedaço de prédio amarelo-sinônimo de muros caiados, o barulho das máquinas, a cigarra ao meio dia, escondidos numa parte antiga no meio da cidade, um romântico vazio que ainda ronda o espaço circunscrito de concreto aberto, de planos retos, racionalizados pelas circunstâncias.

Ele como vendedor de café, sempre acordava bem humorado, a olhar para um sol infinito e não para sua pequena casa.

Ele só vende café, e sua simplicidade se faz na hora de sua sobrevivência ser vencida a cada dia em que acorda de bem com a vida. O melhor café do mundo, cumprimentado por seus fregueses com um sorriso, de espírito elevado de um homem sábio, que atravessa meia cidade em cima de uma bicicleta pesada, driblando a falta de ciclovias e motoristas impulsivos.

A usina se perde em cheio na extravagância do pôr do sol, onde ainda se ouve a sirene das dezoito horas, enquanto fecha suas portas encerrando mais um dia de trabalho. As bicicletas em massa se movem, misturando-se momento clímax de saída, e enquanto isso, na madrugada, o homem do café já está em sua casa, preparando maravilhas para seu café mágico do dia seguinte.

Justo ou não, o mundo segue seu curso, e subjetivamente os destinos de seus moradores é o de coexistir com todas as suas diferenças.

Josette Lassance, 2006.