Um voo pelo desconhecido

Tarde de domingo, um calor de rachar os móveis, o vento passando devagar entre as entranhas das árvores, sentei-me num banco de madeira com as pernas em X, não havia música, nem os pássaros olhavam a paisagem por ali; a casa longe, de telhas de argila, deixava um pouco de fumaça no céu, o rio passava devagar por debaixo dos troncos caídos, onde, embaixo de um ipê eu lia uma revista, enquanto as formigas faziam fila para pegar as folhas puídas, vozes intercaladas de risos no meio da floresta faziam um entorno de alegria, havia calma, e aparentemente harmonia, porque no chão varrido, apenas insetos minúsculos passeavam, ninguém perceberia detalhes de seus cotidianos, tão pequenos e tão infinito o universo que os cercava, a água da chuva poderia lhes parecer uma onda destruidora que lhes varreriam inteiros como uma avalanche para as profundas e escuras águas daquele rio que entrecortava o horizonte.

E nada, absolutamente nada os tiraria desse habitat em que lutavam para obter as folhas de uma refeição, tampouco deixariam de atravessar esses caminhos onde eu passaria de um movimentar a outra ação, pudesse pisar em seus corpos invertebrados, lhe esmagando as cabecinhas, imersas em seu trabalho, em suas cavidades e suas casinhas de terra inflada, porosa e minuciosamente definida com suas patas vivas.

Foi assim que ela veio, aquele projeto de borboleta, arrastando suas pernas vermelhas, emborrachadas, com suas ventosas sapatilhas, encenando uma trilha de passeio, subindo a encosta de uma madeira gasta de uma mesa de piquenique de domingos alforriados, de sossego previsto, de reflexão e meditação, domingo em que paramos a jornada e nos encontramos ermos, em paradoxo com o vilão do stress, ela, a ainda-não-borboleta, feita de lagarta colorida, como um balão seco, os desenhos definidos, mas murchos, enterrados em sua pele bolorenta de crisálida, sem seu casulo, uma lagarta crua, lenta, limitada a seus passos curtos, pegajosos, circunscritos a uma subida turva de uma mesa, ainda sem seus contornos de asas, mesmo que efêmeras, que lhe dariam destinos aventureiros, de um voo sem metas pelo desaguar da paisagem nova, cheirando a musgos, no palpitar da mataria, destruindo a monocromática essência de tonalidades verdes, deixando assim suas cores se destilarem por um delírio indefinido, entre voos e paradas para beber água das flores.

Mas o que posso deixar de uma simples impressão, parar ali no meio de um terreno, de uma encosta de terras e ramos, lendo uma revista, deglutindo suas páginas, uma lagarta vir visitar-me e devolver-me a sensação poética em que imaginava ter perdido, em meio a tantos dramas da vida?

Uma lagarta e uma possível borboleta. Onde estariam agora? Talvez em seu casulo de pedra, fronteira, incomunicável, até seu primeiro vôo pelo desconhecido, em frente ao mundo contrário, despercebidamente colorindo nossos cenários urbanos, secos, cinzas, e cheios de compromissos inadiáveis.