Crenças e novos tempos

A juventude sempre teve os seus sonhos, acompanhado de uma imensa disposição, aquela vontade de dormir querendo despertar, exalar a grandiosa força de primavera , pois sabe que o mundo está todo à frente, esperando com desafios concretos, propostas, novas imagens, novos sons e cores. A vida espera. E a juventude esbanja muita, muita alegria. O tempo nos cobra também. Cobra soluções. Com um diploma na mão – ou quase isso- - a sociedade cobra que o recém-formado ofereça alguma resposta.

Eu compreendi tudo isso muito cedo – compreendi e senti. Assim que obtive sucesso a duríssimas penas no meu primeiro vestibular e ingressei na USP, o meu tio Dante, também antigo aluno da instituição, me cumprimentou e disse que eu estudaria sem pagar nenhuma mensalidade e que o filho do trabalhador pobre não estudaria ali, mesmo com os seus pais pagando impostos pesadíssimos, no mais absurdo sacrifício pela sobrevivência. Assim, eu teria, um dia, que sair de lá e trabalhar para essa gente que não pode estudar no mesmo lugar privilegiado que eu, durante cinco longos anos.

Tomei à letra essa orientação carregada de humanismo e visão social. Eu sabia que o tio tinha total razão e eu haveria de devolver para a sociedade aquilo que ela havia pago para mim com tanto suor.

Então, eu resolvi lecionar na escola pública. Acreditei que ali seria o caminho, o caminho primeiro para eu devolver, com gratidão, a vastidão do conhecimento que eu haveria assimilado com um esforço muito grande, e também consciente da minha nova tarefa. Seria uma missão social que eu haveria prazerosa e responsavelmente que cumprir.

Consegui aulas no colégio de Ensino Médio, que na época era Colegial. O Colégio era o Conde José Vicente de Azevedo, bem pertinho da casa da minha madrinha – a melhor do mundo – no bairro da Saúde. Pela manhã e à noite. À tarde eu ainda cumpria os últimos créditos na universidade. Mas eu tinha uma garra, uma paixão! Uma certa sensação de desassossego positivo de tanto que eu pretendia fazer. E gostava de voltar para casa com a roupa salpicada de giz branco, anunciando silenciosamente a minha missão. Primeiro porque o ano era 1981, na crise da ditadura e então a esperança brotava nas almas e nos olhares, nos gostos e na certeza de novas construções. As pessoas entendiam as entrelinhas, as sutilezas das conversas, que ainda não podiam ser feitas às claras, porque sempre um inimigo poderia estar à espreita para as denúncias nos órgãos do podre poder.

Trabalhei muito e posso dizer que, ali, consegui andar e fazer com que os meus queridos caminhassem também com alguma segurança. Tempo de grandes descobertas para eles também, no incentivo às crenças, ao trabalho, ao saber, ao servir a sociedade. Ainda não vivíamos na sociedade do espetáculo, em que tudo é mercado e prazer. Ainda era tempo de olhar e perceber o outro na dimensão humana e não como um consumidor em potencial.

Houve igualmente o tempo das decepções. Entendi que o mundo era muito mais difícil fora da USP, das tão belas teorias dos grandes nomes da academia. A decepção aflorou sobretudo numa noite, quando, cheia de esperança e de brilho no olhar, entrei na classe e não havia quase ninguém. Perguntei sobre os alunos e a resposta foi clara: “professora, saiu a carteirinha de passe”. Eu não compreendi e eles logo me disseram: “É que os alunos se matriculam até receberem a carteirinha e depois só voltam no ano seguinte”. Aquilo foi uma afronta aos meus sonhos, mas eu teria que aprender a lidar com essa e outras realidades bem mais duras.

Uma sala era apenas formada por moças que faziam o Magistério. E então eu orientava para o respeito, a cidadania e pela luta por direitos iguais. Elas vibravam.

Naquele tempo ainda não se atirava em professor. O máximo que me fizeram foi furar o pneu do meu carro. O rapaz que fez isso – eu me lembro bem - nutria uma inveja imensa de mim. Nunca entendi isso, mas ele deixava exalar pelos olhos uma coisa estranha, sórdida até. No dia da formatura, eu lhe disse que tinha aprendido muito com ele e então eu era grata. Ainda bem que ele não perguntou o que aprendi. A resposta seria verdadeira e ele, no mínimo, ficaria horrorizado com as minhas certezas.

Dali fui para o pré-vestibular e passei envolvida com isso durante quase toda a vida profissional.

Tive uma experiência profissional fantástica no interior de São Paulo, numa colônia japonesa muito interessante: Registro. Ali estavam os mais brilhantes, responsáveis, competentes, comprometidos alunos de todos os meus tempos em sala de aula.

Eu agradeço a todos de coração cheio de esperança e de felicidade, agradeço muitíssimo. Com eles evoluí, acreditei, ajudei um pouco na caminhada, no meio de tantas incertezas. Dei a eles um tempo que não pude dar ao meu filho.

Tenho absoluta certeza de que contribuí para que o mundo fosse melhor. Como todos os professores fazem, mesmo não demonstrando isso.

Logo vai chegar o dia dos professores... e hoje se xinga, se bate, se humilha, se maltrata, se atira em professor. Jovens, não apodreçam! Não se deixem corroer pelos vermes! Vivam e respeitem aqueles que oferecem para vocês uma parte enorme de suas vidas! Se eles não conseguem sorrir, é porque o cansaço é infinito. Se não conseguem te ouvir, é porque não são terapeutas e são cobrados continuamente para que deem conta dos seus currículos.

Jovens, se vocês não conseguem compreender a importância do respeito, da partilha do conhecimento, se não entendem a beleza profunda da compreensão, do exercício do entendimento, a existência do outro além dos seus caprichos e das suas limitações, pensem, pelo menos, assim, minimamente, para a própria defesa de vocês : “A TERRA É REDONDA; O QUE VAI, VOLTA”.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 27/09/2011
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