Uma ultima reunião

Final de ano com minha família da Argentina é uma das minhas poucas experiências boas de parentesco: churrascão com todo mundo, minha tia falando das suas experiências nos EUA, meu primo e meus irmãos trocando curiosidades sobre nossos países, minha avó com aquele jeito tão carinhoso, meu tio que não para de ser engraçado e o meu avô com histórias tão distantes quanto cheias de amor. Toda vez ele tinha algo inédito pra contar, eu ficava me imaginando moleque e magrelo fazendo aquelas bizarrices, desligando a televisão no meio do filme e pirraçando pra ninguém religar, falando pro tio Tino “licença barrigudo!”, brincando com a cachorrinha de casa, etc.. Depois a gente jogava Chinchón até tarde, conversava no nosso dialeto portunhol, que vou tentar imitar aqui, tomava chimarrão, vinho e contava muita história.

Naquele final de ano não foi diferente. Meu tio apareceu com o carro lotado de fogos de artifício. Nós montamos nosso pequeno arsenal antiaéreo no telhado da casa dos meus avôs e descemos pra sala, esperando a ceia e logo depois o momento de declarar guerra aos vizinhos. Aquela cena era digna de um filme ganhador de Oscar, todo mundo conversando, contando causos e o cheiro da comida emanando da cozinha. A comida da minha avó tem um efeito mágico sobre mim, eu não consigo ficar cheio. Teve uma vez que comi tanto, mas tanto, que fiquei surdo! Sim, surdo, eu conto isso pra todo mundo e ninguém acredita! É serio, eu fiquei surdo uns 15 minutos. Daí larguei o garfo, a contragosto, diga-se de passagem, mas larguei. Eu tentava acompanhar meu avô no vinho, o que era impossível, já que aquele senhor de mais de 80 anos conseguia beber uma garrafa de vinho sozinho e não dava nenhum sinal de embriaguez, apenas a mesma feição de metalúrgico aposentado contemplando os filhos de meia idade e os netos crescidos. Ele olhava pra cada um de nós como se admirasse uma bola de sabão flutuar, sempre boquiaberto e pensativo, aposto que dentro de sua cabeça ecoava: “Meu Deus, já troquei fralda de todo mundo aqui tantas vezes e agora estão sentados na minha mesa, bebendo, comendo e conversando...” De vez em quando alguém da família falava “fecha a boca, pai!” A bola de sabão estourava, ele voltava para o mundo real, olhava para os netos brasileiros e falava da comida “Está muy gustosa”, lembrava alguma pérola de alguém e então voltava a soprar suas lembranças e vê-las tomando vida, flutuando bem a sua frente.

Depois da ceia fomos todos pra fora da casa, estava na hora de acender os fogos. Meu espírito piromaníaco gritava de alegria, mas o espírito de oficial da “infanteria marina” do meu tio que roubava a cena. Ele imitava um sargento preparando a artilharia, soltava uns jargões de guerra e exibia um sorriso louco. Os soldados, pai, tio e eu, subimos no telhado, tiramos algumas fotos próximas ao armamento de guerra dos Vicente e logo depois os oficiais desceram, talvez pra organizar o restante da família que estava aguardando na calçada, talvez porque sentiram medo ao ver a quantidade de poder que estava em minhas mãos. Todos se ajeitaram lá em baixo, até os vizinhos saíram de casa pra ver o foguetório. Meu avô saiu de casa por último, ele tinha muita dificuldade para andar e usava bengala, mas não estava nem um pouco desanimado, na verdade eu ficava impressionado com a força que ele guardava nos braços, se não fosse a idade avançada e a infinidade de problemas de saúde, ele estaria comigo em cima do telhado, dando ordens de como acender os fogos e o melhor lugar para posicionar o armamento, sabe... sendo o general. Mas ao invés disso ele estava sentado na única cadeira da calçada, rodeado por seus entes queridos e seguidores, um local digno para o poderoso chefão da família dos Vicente.

Em cima do telhado eu aguardava o sinal para começar o ataque. Quando o Tio-capitão autorizou: “Tchê, Fernando, no se esqueça de dizer o que havíamos combinado!”. Acendi o pavio e antes que saísse o primeiro tiro corri para o lado do telhado que dava com os vizinhos e gritei: “Ai vão los nuestros, putos de mierda!”

Fiquei viajando naquelas bolas de fogo que subiam, explodindo na madrugada, juntando-se às milhares de outras explosões da noite de natal de Buenos Aires. Olhava os tiros intermináveis daquela caixa de pólvora. Impressionante, antigamente tinha um pavio pra cada tiro, e agora a gente acende um pavio e o resto sai automático, sei lá, acho que preferia o modo antigo, comprar aquele monte de fogos e acender um por um parecia ser mais satisfatório, agora eu estava lá viajando naquelas bolas de fogo que pareciam explodir cada vez mais perto, cada uma de uma cor diferente, cada vez mais perto, brilhando tanto, tão bonitas... Nossa! Essa foi perto mesmo, uma faísca queimou minha blusa! O que está acontecendo?!

Infelizmente naquela noite nos havíamos sido premiados com um pequeno defeito nos fogos. A caixa de 48 tiros começava normalmente, com as explosões coloridas bem no alto, só que lá pro tiro vinte ou vinte um as explosões estavam a dois metros e eu estava preso no telhado com a artilharia do meu lado, deitado de barriga no chão, as mãos na cabeça, sentindo as fagulhas queimando tudo a minha volta e esperando a hora que tudo fosse explodir! A chuva de fogo caia pela calçada, as mulheres começaram a gritar, uma explosão disparou o alarme de carro, alguém quebrou um copo, um caos. O pessoal saiu correndo pra se salvar, mas no meio daquele Deus-nos-acuda, o abuelo ficou pra trás, sentadinho na sua cadeira, achando que aquilo era apenas uma novidade, admirando aquele espetáculo de labaredas, enquanto chovia fogo ao redor, ele estava lá, boquiaberto como sempre, provavelmente pensando: “já troquei a fralda do Fernando e agora olha que bonito espetáculo ele está fazendo...”. Eu lá em cima do telhado só ouvia a voz do meu tio “Resgatem el abuelo!!”

Felizmente os tiros acabaram e ninguém se machucou, inclusive o abuelo ficou me elogiando: “Que espetáculo hermoso” enquanto eu olhava para os espectadores admirando o fato de ainda estar vivo. Rapidamente tudo ficou engraçado, meu tio me imitava gritando “Por la pátria!”, atirando um morteiro imaginário na calçada, minha avó, meu pai e sua esposa teciam a história de como escaparam por pouco da morte, meu irmão e minha irmã estavam quase pocando de rir da minha cara de assustado enquanto minha namorada me abraçava e tirava um pouco do chamuscado dos meus ombros, “Machucou, amor?”.

Passada a aventura, fomos trocar presentes e beber mais vinho... No Reveillon fizemos a refilmagem dos acontecimentos do Natal, mais uma vez passamos por festas, risadas, comilança, mais uma vez tudo de bom. Logo depois viajamos para Mar Del Plata, praia e mais praia e, depois de alguns dias, de volta a Buenos Aires. Era dia 5 de janeiro quando chegamos em Buenos Aires... Não sei o que dizer sobre o dia 5.

Quando chegamos a Buenos Aires todos estavam muito cansados e, como não estava cedo, decidimos ir ao apartamento e dormir para aproveitar o outro dia. Meu pai foi se encontrar com meus tios na casa dos avós e voltou de madrugada, quando ele entrou no apartamento eu acordei e conversamos um pouco, era difícil a reunião de todos da família e este ano tudo ocorreu bem, todos estavam bem felizes.

Era madrugada do dia 6 de janeiro, eu estava deitado olhando minha namorada dormindo. A penumbra do quarto permitia uma vaga feição de seu rosto e transformava o teto da sala em um céu sem estrelas, o restante eram as sombras silenciosas que fazem companhia permanente a minha cabeça doentia, foi neste estado que escutei o tímido toque de celular que vinha do quarto de meu pai, sua voz, fosca pela distância, sobrepôs o timbre do aparelho e o som de um corpo levantando-se e caminhando pelo quarto tomou minha atenção. A porta do quarto abriu, ele se aproximou de mim e falou em um tom baixo, demonstrando preocupação: “Vovô foi para o hospital...”.

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Eu esperava no corredor branco. Junto de mim estavam tia Martha e minha avó. Tínhamos acabado de ver meu pai e tio Daniel passarem as portas do final do corredor à procura do quarto do abuelo, enquanto nós, sentados e impotentes, esperávamos notícias. Naquele momento, sentia orgulho de ter o sangue do meu avô: um homem muito forte, amanhã já estaria sentado na mesa de almoço relembrando velhas histórias: ele trabalhou a vida toda como metalúrgico e aos quarenta e poucos anos foi aposentado. Aparentemente a mistura de charutos e gases tóxicos daquela antiga metalúrgica secaram seus pulmões, o médico que o aposentou disse que ele tinha pouco tempo de vida, então era melhor que ele aproveitasse com a família. E aproveitou mesmo, até os oitenta e três ele estava aproveitando! Amanhã meus tios estariam rindo e mais uma vez fazendo piada das vitórias do meu avô sobre a medicina moderna.

Mas ali naquele corredor branco, na sala de espera, na madrugada, onde se viam vários médicos passando, enfermeiros apressados, olhares de familiares angustiados, nada tinha graça alguma. Minha avó estava nervosa, apertava as mãos, olhava para o chão, para o teto, para as paredes. A angústia jorrava pelos gestos, o silêncio discursava a preocupação de cada um. Muitas histórias tiveram seu fim naqueles corredores brancos, nos sons idiossincráticos distantes, nos passos e nas lágrimas de pessoas angustiadas, que não sabem se olham para o teto, para o chão ou as paredes. Uma parte de mim preocupava-se, não sabia se estava nas últimas linhas da história de meu avô ou se era mais um capítulo de sua vida, mais um ano novo, mais uma ida ao hospital. Porém, na verdade, eu sentia que aquele acontecimento só poderia ter um fim: dentro de poucos momentos, veríamos meu pai e meu tio saírem das portas do final do corredor. Caminhariam em nossa direção, lado a lado, sérios e cansados, com feições tensas, passos controlados e olhos retos. Prostrar-se-iam de frente a minha avó e meu tio diria que essa passou perto, que meu avô tinha sido medicado, ele já poderia voltar pra casa, mas teria que ficar de repouso. Minha avó ficaria preocupada, pensaria no que fazer para cuidar de meu avô, pensaríamos em como levá-lo para casa e quais cuidados tomar. Passado o susto do dia 6 de janeiro, as piadas do dia 7 seriam inevitáveis, o almoço de amanhã seria o final feliz dessa noite e tudo voltaria ao normal.

Então, inevitavelmente, a porta do corredor se abriu. Inevitável também foram os mesmos passos que eu descrevera. Previsível foram as feições e os olhares retos de meu pai e Daniel e, como eu imaginei, aproximaram-se, e claro, prostraram-se de frente a minha avó. Porém, meu pai que se aproximou da abuela, começou a falar. Um grito rápido e contido de desespero matou o início da frase.

Meias palavras que romperam o dique de tensão que já transbordava. Uma meia frase fechava a inexorável ultima página do livro da história de meu avô. Eu olhava para a cena dos irmãos abraçando a mãe, tinha presenciado tudo, mas não acreditava. Tinha escutado as meias palavras de meu pai com perfeição, minha mente fez como a de todos e completou o finito sentido da morte, mas não acreditava. Onde eu estava? Que situação é essa? O que está acontecendo? Meu avô não está bem? Eu sabia todas as respostas, mas as perguntas eram mais confortáveis. Os ouvidos repetiam a voz de meu pai, cada vez mais rápido. Meu transe só terminou quando minha tia estendeu o braço, me puxando para realidade: estávamos abraçados sofrendo a perda de meu avô e a voz de meu pai, distante, ainda ecoava nos corredores brancos da minha cabeça: “Os médicos tentaram de tudo, o pai não aguentou... foi inevitável”.

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Um cachorro havia caído do céu. Bateu com tanta força no chão do cemitério que todos os familiares assustaram-se, ali me dei conta que estava presenciando coisas que nunca tinha feito e nunca havia visto. Enquanto o cachorro saia mancando e gritando para o longe dos nossos olhos, somei os acontecimentos: nunca enterrei ninguém antes. O beijo que meu primo deu na lápide de meu avô, lembrarei. Os familiares esmiuçando-se pelos corredores do cemitério, o trânsito de uma forma tão melancólica, as nuvens da noite do hospital, o ultimo abraço ao meu avô no necrotério.

Me pareceu tão absurdo no momento, como uma injustiça, o falecimento de meu avô. Mas depois de digerir os acontecimentos eu vi a realidade. Quantos de nos serão abençoados em ter os entes queridos ao seu lado na hora da morte? Quem de nos poderá dizer que a morte poderia vir quando ela desejar: “Estou pronto” disse ele, segurando-se na bengala, quando estávamos nos dois do lado de fora da casa, naquela manhã fresca, daquela época nas minhas memórias, “a morte pode vir quando quiser, já vi meus filhos viverem, vi meus netos crescidos. Quando ela quiser, estou pronto”. Quem de nós terá em seu funeral a enorme quantidade de pessoas em sincera presença, com sinceros sentimentos, vindo dar, sinceramente, o último adeus? Quem de nós poderá despertar o sentimento de saudade pura num momento como esse? Uma saudade descontaminada pela perda súbita, pela vida mal acabada, mal vivida. Pela vida da qual outros dependiam e agora não tem mais a quem recorrer? Quem de nós poderá dizer que todas as tarefas em vida foram realizadas? E por último, a quem de nós será dado o direito de uma ultima reunião com seus entes queridos, a uma ultima despedida genuinamente feliz, em que todo o mundo partilhe dessa felicidade, os últimos abraços, as últimas histórias, os últimos copos de vinho, os últimos fogos de artifício...

Essa última página é reservada apenas aos poderosos chefões.

Dedicado al Padrino Vicente.