Crianças...

Engraçado como as filhas insistem em ser diferentes das mães...

Lá estava eu com meus 9 ou 10 anos e minha mãe persistindo em me ensinar a ser prendada. Por que eu? pensei, ao olhar para ela, sem enxergá-la. Pelo menos, pareceria estar atenta ao discurso dela. E já não bastava ela ter me tirado o direito de ser canhota, treinando a minha destra? Imagine... como iria me ensinar a costurar, a fazer crochê, tricô, se eu fosse canhota? Porém, um fato inusitado poria um definitivo fim aos sonhos dela em relação a mim.

Meu irmão sempre presenciava essas tentativas de mamãe e gargalhava ao ver a minha cara. Lógico que não saía dessa sem um hematoma na perna, mas o prazer de me ver sem saída era compensador, na opinião dele.

Certa vez, minha mãe chegou das compras toda feliz e, mesmo antes dela me contar a novidade, intuitivamente entendi que não seria coisa boa.

_ Filha, comprei algo que você vai amar.

_ Minha avó-anjo, que morava conosco na época, olhou para mim e, creiam, amigos leitores, leu meus pensamentos. Tenho certeza, porque sorriu solidariamente ao me ver apreensiva.

_ O que foi, mamãe? sem empolgação, mas também sem querer magoá-la.

Foi então que, pior do que as assombrações que assustavam as minhas noites, após assistir aos filmes de terror, ela me mostrou algo que me fez gelar dos pés à cabeça. Não sei em que loja ela encontrou um bastidor, com pano riscado e meadas para bordar. Tudinho juntinho, ali, naquele embrulho desconcertante.

Minha infância foi marcada pela presença de mulheres artesãs, que costuravam, bordavam, tricotavam e todos os avam relacionados. Porém, apesar de sempre admirar e muito esses trabalhos, nunca foram a minha praia, o que denunciava, nos olhos de minha mãe, uma ponta de decepção.

O fato é que tentei disfarçar o que pensava, no momento em que vi a novidade. Certamente ela percebeu, mas preferiu não demonstrar.

Iniciamos as aulas. Enquanto eu tentava entender como virar minha mão direita para fazer a volta do bordado, meus pensamentos estavam nas possibilidades de novas brincadeiras ou de novas leituras.

Amava brincar com meu irmão de pique-esconde, de futebol de botão, de bets ou, simplesmente, ler ou assistir às minhas séries preferidas, na televisão.

Apesar de brigarmos como cão e gato, eu e meu irmão, nas "artes", éramos muito cúmplices. Por isso, os castigos, as palmadas e os sermões eram sempre compartilhados também. Foi justamente por causa dessa cumplicidade que matei qualquer esperança da minha mãezinha de ter uma filha, a única, habilidosa nos trabalhos manuais.

Dias após o início das minhas aulas de bordado, meus pais foram fazer a compra do mês, no mercado. Iriam demorar... Meu irmão trabalhava na construção de uma pipa linda. Eu o ajudava, dando palpites... Ele me olhava, às vezes, com cara de quem fosse me esganar. Então, quando já estava pronta, cadê a linha? Nossa! Tinha se esquecido de que se desfez dela ao dá-la para um amigo.

Como deixar meu irmão naquele desespero? E aquela pipa era a mais linda que eu tinha visto meu irmão fazer. Ficaria ainda mais linda, toda colorida, voando naquele céu de primavera, azulzinho...

Olhei para o bordado, ainda mal começado, e lá estavam as linhas de bordar. Linhas muito fortes, com certeza. Além disso, coloridas, o que deixaria o espetáculo do voo da pipa ainda mais bonito.

- Tem certeza? Acho que desta vez ganharemos uma surra por isso.

- Ah, não... Mamãe entenderá. Você não pode deixar de empinar sua pipa por falta de linha.

Pouquíssimas palavras o convenceram, o que foi, para mim, um alívio. Finalmente estaria livre daquele bordado, onde minha mão destra não se encaixava.

Quando minha mãe chegou, de longe viu nossa inspiração. Foi um "Deus nos acuda!". Porém, à noite, quando ela pensava que estávamos dormindo, ouvi-a comentando nossa bela arte com meu pai e dando muitas risadas.

Crianças...