A Suicida

O olhar já não era mais límpido, de cor azul pálida, como outrora fora. Nem seus braços eram fortes, como quando moía o fumo com fúria bárbara. Sua pele também não era mais lisa, como pêssego róseo maduro e de aroma doce. Desde então sua vida tornara-se um meandro de medo, sem poesia e sem cor.

Na casa em madeira úmida de frestas frias de cor azul, onde habitava só, com o vento a penetrar pelas vísceras e a se recostar sobre suas dores, sentia não só remorso, que lhe corroia feito câncer, sentia também culpa, de um tamanho infinito, um medo importuno da vida. Uma vontade de morrer.

Eis que na vida caminhos se cruzam, a enovelar meios. Os nossos, tortuosos por estradas em barro e de chuva árida, de caminhos friorentos, fora apenas para encontrar sentidos, alimentar angústias, perpetrar nossa vontade de viver. Fomos e persistimos cegos, conhecendo-nos aos poucos uns aos outros, na escuridão do nada, desconhecendo encontros, sem saber o que depararíamos. Fomos arquitetando horizontes, encontrando abismos e cascatas, costurando céus e vimes. Éramos sós, mas não só pesquisadores fomos. Fomos, antes de tudo, gente, e do afago criamos vidas. Eis que defrontamos com ela, pura, e, de tão doce, com ela dançamos, ao som de seus olhos.

Fora a escolhida para responder-nos inquietudes, mistérios silenciados em vida, como se fatos pudessem ser guardados em tumbas. Permaneceu ali, mecanizada e estática, sentada embaixo dos nossos narizes atrozes, de respiração opaca, dificultada pelo fumo excessivo. Não nos conhecia e analisava-nos como um falcão a espreitar a presa, como se pudéssemos fugir em vôo raso. “Viemos levar o que restara do seu gozo?” Mesmo assim seus olhos esbugalhavam em pavor, misturado em suavidade, em pobreza, em sentimento. Pobres também éramos nós, que descalços estávamos e permanecíamos desnudos de vida. Desnudos e desfeitos, em plena reconstituição, a preencher-nos o que nos faltava.

Passou ela, mulher, doce e linda, de saia rodada e lábios pintados, a nos propor, inconsciente, uma espécie dócil de jogo, e tentava estabelecer o limite, o ponto íngreme da montanha em neve, onde chegaríamos. Sua vida nos deu verbos, e dos verbos frágeis histórias. Doce feito mel e pura como água cedemos ao seu embelezamento. Suas características eram próprias. Era uma velha astuta e a pele enrugava a medida que a sôfrega vida lhe pregava artimanhas. A questão era: “como conversar com mortos? Como retratar vidas suicidas em sombrios detalhes, pequenos, encantadores, sucumbidos, como num quebra cabeça, e estabelecer, em partes, as causas para os seus suicídios? Como não feri-la e deixá-la ali, despida, com ferida aberta a sangrar?”

Pois bem, carregava sob seus ombros o peso de uma vida maldita, de escassos e insolentes instantes de alegria. Carregava também na pele as marcas das surras sofridas pelo marido, a quem morria de um amor romântico, como tatuagem a perfurar os poros, antes de ele suicidar-se. As marcas eram dos golpes de foice, dos tombos que sofrera, dos dentes arrancados, das mãos esganadoras que encontravam seu pescoço até o ar exaurir. As dores eram da pelve forçada dos sexos brutais cedidos em obrigação marital. Do coito desprezível, do gemido arfante, do desprazer. As mãos calejadas eram das andanças e do trabalho escravo desde menina moça, dos filhos paridos no galpão, da limpeza diária da casa, das enxadas, da miséria. As rugas eram das preocupações com as finanças, do medo da seca e da enchente, dos ventos e dos temporais, da enxurrada e da peste. Os cabelos brancos e fartos eram o semblante das letras desconhecidas, dos números incontáveis, dos livros que não lera. O sorriso, sim, o sorriso era da vida que ainda existia. Um sorriso meigo de esperança.

A corda que enrolara em forca o pescoço do marido e, pendurada na forquilha, golpeada ao encontro da morte, fora por ela retirada, aos prantos, sob soluços de criança aturdida. Agora, o que restava era a solidão e a lembrança dos olhos arregalados daquele homem, na hora da morte, a lhe vigiar atento. Seu par de olhos eram como tochas fumegantes, a esvoaçar da face. A pele pálida feito cal, os dedos arroxeados como pétala, a língua espessa e branca a tombar pra fora, caída da mesma boca que em noites raras de amor lhe beijara. O que restara então, naquele úmido gramado sereno, ao qual se ajoelhara, era seu peito rasgado, um sentimento de culpa, feito penitência, pelos instantes que deixara só, e ele sozinho se foi. Aos prantos a jorrar lágrimas feito correnteza confessara que o queria de volta, não na forca, nem no caixão, onde os vermes comiam com veemência suas carnes. Queria-o, mas ali, ao seu lado, em vida, a lhe afagar a dor. “Então afinal você morreu e me deixou; me diz, o que devo fazer agora: morrer?”

Sofre enquanto respira, intensamente, sozinha, nos entremeios do nada. “Há perigo em mexer com mortos?” O retrato na parede em madeira revelara. Seu cheiro presente fazia lembrar, e chorar de amor. “Morre quem se suicida, ou morre quem em vida sofre?” Às vezes, a morte impede o sofrimento do mundo.