A Senhorinha com Musiquinha na Barriga

Elsa B. Pithan

Ela não era velha. Ela estava velha mas muito velha mesmo. Sentia-se bipartida, claramente. Às vezes se olha lá bem dentro de si e nota o quanto já estão desgastados os aparelhos que usa para se manter, para continuar sendo ela. O aparelho respiratório: nunca soube lidar bem com ele; o aparelho circulatório, o digestivo, o urinário, “por me dá lá aquela palha” já entram em pane. E o esqueleto? Esse, então? Só porque o tempo mudou, ou mudou o colchão, a ossatura começa a doer, dói até um osso que ela nem sabia que existia ali. E como dói!

Como é que ela vai poder sair, passear ou mesmo fazer as lides da casa, algumas pelo menos, e comer os doces, as tortas, o bolo inglês, o pudim de laranja e os cremes? Só pode olhar e sentir o cheirinho. É bem verdade que pode comer uma maçã, uma pera, um kiwi, mas os agrotóxicos alteraram o sabor, aliás, o fruto todo. Os que ela costumava comer eram gostosos, perfumados, doces, caldosos. Passear no Centro como? Se ninguém passeia. Todos andam ligeiro, sérios, até falando sozinhos, empurrando os outros sem ver, sem se darem conta. Sair, só acompanhada. Pode ser assaltada. Parar no meio do calçadão para bater um papo, não ousa, pode ser atropelada, por gente. Dar uma corridinha para pegar o ônibus, não pode, o coração rateia. Ah, só sai com céu de brigadeiro. Agora, a cabeça, essa está cem por cento. É um acervo. Números de telefones do táxi, do supermercado, da farmácia, do Postinho de Saúde, de amigos queridos, esses, não esquece nenhum, e nem a data do aniversário deles.

Semana passada descobriu que tinha uma musiquinha na barriga. Foi depois que o Dr. Sérgio lhe receitou Carbo vegetalis. Às vezes, sentada, lendo o Moacyr Scliar, o Laurentino Gomes ou o Lima Barreto a musiquinha surge. Parece um trompetista treinando antes de começar mesmo a tocar. Os gases se movimentam e cantarolam uns “assopros”, às vezes altos, às vezes suaves que vão afinando, bem afinados, sem sair do tom, que quem está por perto ouve surpreso levantando as sobrancelhas. Às vezes a musiquinha tenta sair da barriguinha numa hora imprópria mas ela ainda tem controle sobre ela e então a musiquinha continua lá dentro. Aí então, ela tem a certeza que está bipartida. Uma parte que pode tudo pensando e a outra parte que começa a ratear.

Criou então seu universo dimensionado pelas suas limitações e dentro dele cria felicidades. Seu pensamento é poderoso e seus pensares expressam suas emoções. Já o corpo vai a reboque. No Pan-Americano, no México, como é bipartida, uma parte dela fica sentada no sofá com os olhos na TV, a outra parte dela, está lá no México na arquibancada torcendo para o Cielo, para o Thiago, a Daniele, a Maurren Maggi, Marcel e seus patins, sofrendo com a Jaqueline, vibrando com o vôlei, com o futebol a ginástica rítmica, a esgrima, com a tristeza do basquete... beleza pura.