FÉRIAS INTERROMPIDAS
Separação anunciada. Assim que comecei a arrumar as roupas, ela veio com os seus brinquedos e os colocava na mala. Tentei despistar, joguei a bolinha, fiz carinho em sua barriga, dei petisco, mas Nanel pressentia minhas intenções e resolveu ser a bagagem. Depois de algumas investidas desistiu de disputar o espaço e ficou tomando conta dos meus movimentos.
Chegou a hora. Levei-a junto com a cama, a ração e os brinquedos para o hotelzinho de animais e me despedi com algumas lágrimas. Durante dez meses, preenchi os dias com os seus movimentos pela casa, seus latidos e dengos. A memória do seu crescimento arquivada na noite em claro logo na primeira semana com a giárdia, no susto com as pulgas, no primeiro cio, nas brincadeiras, nas travessuras... E agora a breve interrupção da rotina para as festas de final de ano.
Deixei-a com o coração partido, mas com os atrasos e cancelamentos dos vôos não poderia sujeitá-la ao transporte aéreo. Adiei ao máximo a ida, mas chegou a véspera de natal e meus compromissos familiares no Rio de Janeiro. Uma semana apenas...
Durante a noite de natal, lembrei-me da caixa de petiscos que deixei para sua ceia e guardei o seu presentinho embaixo da árvore. Senti falta de seu corpo entre meus passos, sua presença constante nas portas fechadas e o seu contentamento verbalizado no rabo sempre abanando.
Quatro dias. O criador de cães desiste de tentar vencer o banzo de Nanel e me telefona. Nunca viu uma filhote tão triste. Nanel não come há dias e insiste em chorar escondida sob o estrado onde ficam as rações. Não há outra coisa a fazer, Nanel talvez não resista ao exílio. Desisto do reveillon e transfiro minha passagem para o dia seguinte.
Dia de caos no Rio. Os noticiários só falam sobre os atentados, as milícias, os mortos, a crueldade... Fico indignada com os comentários sobre a segurança nas festas monumentais quando o momento é de luto. A preocupação com a passagem do ano enquanto a vida passa de repente em atos covardes. A bipolaridade das grandes metrópoles. O motorista de táxi dá uma volta enorme no Rio para evitar os túneis e as zonas de mais violência. Tudo é medo e perplexidade, miséria e degradação.
Vencidos todos os obstáculos, desembarco em Curitiba e vou direto para o hotelzinho. Ela reconhece minha voz e fica agitada. Quando chegamos em casa, ela corre desesperadamente por todos os cômodos, pula na cama, cheira todos os cantos, demarca o território e finalmente dorme no sofá depois de comer a tigela de ração.
Procuro na cabeceira o livro Cão como nós de Manuel Alegre, publicado pela Editora Dom Quixote, que li um pouco antes de viajar e descanso nas palavras da abertura da narrativa:
“Não era um cão como os outros. Era um cão rebelde, caprichoso, desobediente, mas um de nós, o nosso cão, ou mais que o nosso cão, um cão que não queria ser cão e era cão como nós.”
Separação anunciada. Assim que comecei a arrumar as roupas, ela veio com os seus brinquedos e os colocava na mala. Tentei despistar, joguei a bolinha, fiz carinho em sua barriga, dei petisco, mas Nanel pressentia minhas intenções e resolveu ser a bagagem. Depois de algumas investidas desistiu de disputar o espaço e ficou tomando conta dos meus movimentos.
Chegou a hora. Levei-a junto com a cama, a ração e os brinquedos para o hotelzinho de animais e me despedi com algumas lágrimas. Durante dez meses, preenchi os dias com os seus movimentos pela casa, seus latidos e dengos. A memória do seu crescimento arquivada na noite em claro logo na primeira semana com a giárdia, no susto com as pulgas, no primeiro cio, nas brincadeiras, nas travessuras... E agora a breve interrupção da rotina para as festas de final de ano.
Deixei-a com o coração partido, mas com os atrasos e cancelamentos dos vôos não poderia sujeitá-la ao transporte aéreo. Adiei ao máximo a ida, mas chegou a véspera de natal e meus compromissos familiares no Rio de Janeiro. Uma semana apenas...
Durante a noite de natal, lembrei-me da caixa de petiscos que deixei para sua ceia e guardei o seu presentinho embaixo da árvore. Senti falta de seu corpo entre meus passos, sua presença constante nas portas fechadas e o seu contentamento verbalizado no rabo sempre abanando.
Quatro dias. O criador de cães desiste de tentar vencer o banzo de Nanel e me telefona. Nunca viu uma filhote tão triste. Nanel não come há dias e insiste em chorar escondida sob o estrado onde ficam as rações. Não há outra coisa a fazer, Nanel talvez não resista ao exílio. Desisto do reveillon e transfiro minha passagem para o dia seguinte.
Dia de caos no Rio. Os noticiários só falam sobre os atentados, as milícias, os mortos, a crueldade... Fico indignada com os comentários sobre a segurança nas festas monumentais quando o momento é de luto. A preocupação com a passagem do ano enquanto a vida passa de repente em atos covardes. A bipolaridade das grandes metrópoles. O motorista de táxi dá uma volta enorme no Rio para evitar os túneis e as zonas de mais violência. Tudo é medo e perplexidade, miséria e degradação.
Vencidos todos os obstáculos, desembarco em Curitiba e vou direto para o hotelzinho. Ela reconhece minha voz e fica agitada. Quando chegamos em casa, ela corre desesperadamente por todos os cômodos, pula na cama, cheira todos os cantos, demarca o território e finalmente dorme no sofá depois de comer a tigela de ração.
Procuro na cabeceira o livro Cão como nós de Manuel Alegre, publicado pela Editora Dom Quixote, que li um pouco antes de viajar e descanso nas palavras da abertura da narrativa:
“Não era um cão como os outros. Era um cão rebelde, caprichoso, desobediente, mas um de nós, o nosso cão, ou mais que o nosso cão, um cão que não queria ser cão e era cão como nós.”