Manoelito morreu

Falei sobre as minhas atividades no Hospital de Clínicas de Curitiba e esqueci de mencionar uma das mais curiosas: fotografar mortos. Gente que morria e não tinha família para buscar o corpo. Eu fazia um texto e enviava para a imprensa buscando parentes. Mas também precisávamos ter uma foto, caso aparecesse alguém e precisasse de confirmação. E então lá ia um de nós até o necrotério – fui o fotógrafo em duas oportunidades.

Na primeira delas, o morto era um recordista mundial. Estava no Guinness: ninguém havia pedalado mais no mundo do que Manoel Machado da Silva. Pois bem. No necrotério, parei na entrada, um pouco assustado. O homem que trabalhava lá entrou primeiro. Mostrou a nova geladeira, adquirida com muito esforço. Eram dez gavetas. “Tem uma rodinha aqui que já está com defeito. Quando você abre a porta, ela cai”. E passamos então para a gaveta que nos interessava, a gaveta do recordista. Desce uma maca toda coberta. O homem descobre apenas o rosto. Reclama que está vazando. Procura limpar e estende um pano embaixo da cabeça, para deixar a cena menos feia para fotografar. Diz que foi hepatite. Limpa a boca também. Preparado o cenário, eu me aproximo.

Oras, eu pensei que ia encontrar um jovem ciclista. Era um homem de 60 anos. Suspiro. Preparo a máquina e disparo em cima do seu rosto. Vou até o outro lado da maca, me aproximo e fotografo novamente. São ao menos sete fotos – com a vantagem de nenhuma delas sair tremida, por motivos óbvios. E em seguida sai de lá.

Depois fui pesquisar sobre a vida do sujeito – que merecia uma novela. Manoelito, como era chamado, nasceu num circo no Rio Grande do Sul. Sua mãe, uma portuguesa, morreu no parto. No circo, fazia números com bicicleta. Aos 20, decidiu começar a pedalar pelo mundo afora. Logo se tornou vencedor de uma prova de resistência. Ganhou o apelido de “Pedal de Prata”. Chegou a pedalar 62 horas ininterruptas. Diz que havia pedalado em todos os estados do Brasil. Andou também pela América Latina. Entrou no Guinness em 2005 com a marca de 201 mil quilômetros pedalados. Pretendia parar no final do ano.

Em sua última viagem, Manoelito partiu de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, com destino a Roraima, onde morava. Quando passava por Ponta Grossa, foi assaltado e levaram a sua bicicleta. Sem saber como continuar a viagem, pegou uma carona para Curitiba. Chegou a um posto de gasolina e fez amizade com os frentistas, que arrumaram um lugar para que ficasse. A sua história chegou a um jornal de Curitiba, que fez uma matéria com ele. Queriam entrevistar o recordista mundial que apareceu na cidade sem a bicicleta.

Duas semanas depois dessa matéria ser publicada, os amigos do posto de gasolina trouxeram o ciclista até o hospital. Ele não estava nada bem. Lá ficou internado por cinco dias, até que faleceu e foi fotografado por mim. E escrevi uma nota buscando parentes, que certamente não existiam. Na sua última entrevista, Manoelito havia dito: “Minha família são os amigos que fiz todos esses lugares”. Como achar um parente então? Em todo caso, a nota foi publicada em dois ou três jornais, e a notícia se espalhou rapidamente entre os ciclistas profissionais, que o conheciam e admiravam.

Manoelito também havia dito: “Pretendo terminar essa viagem e descansar”. Queria chegar a 220 mil quilômetros. Seu grande objetivo havia sido chegar ao Guinness. Pedalou pouco mais de dois anos após ter conseguido sua meta. Se ele encontrou algum parente, não sei dizer. Sei apenas que alguns dias depois li o seu nome no jornal entre os sepultamentos do dia – teve, enfim, um destino digno. E mais não sei sobre esse estranho caso. Em outra hora eu falarei sobre o segundo morto que tive que fotografar – um que, a exemplo do Pedal de Prata, também era uma pessoa célebre. Mas agora, paremos por aqui.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 08/11/2011
Reeditado em 08/11/2011
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