Necrotério, centro cirúrgico e os Beatles

Prometi que falaria sobre o segundo morto que me vi obrigado a fotografar no necrotério do Hospital de Clínicas de Curitiba, mas a verdade é que não tenho muito a falar sobre ele. Isso porque não me interessei em levantar a sua história, como fiz com o Manoelito, recordista mundial de pedaladas. Também não houve nada de diferente no momento de fotografá-lo: a mesma maca descida de uma geladeira, a mesma coberta sendo retirada de cima do rosto, e a mesma máquina fotográfica em cima dele. Os mortos são muito parecidos entre si – em todos, a coisa que mais espanta é não terem vida.

Esse segundo morto chamava-se Paulo Romeiro Marcondes Filho. Por coincidência, também era um morto ilustre – e que nem por isso tinha família. Era biólogo e, pelo que apurei rapidamente, foi um dos criadores do licor de araucária. Pois bem. Mas um dia também havia de morrer, e quando isso aconteceu não havia quem o buscasse no hospital. Tiremos pois algumas fotos e mandemos uma nota para a imprensa.

Paulo Romeiro teve mais sorte do que o Manoelito, pois alguém viu a nota e veio reclamar o seu corpo. Foi um vereador de Curitiba. Conhecia Paulo Romeiro, sabia da sua importância para a biologia. Dizia que ele nunca falou muita coisa sobre seus familiares. Reconheceu que o morto era mesmo o seu colega, e tratou de providenciar o sepultamento.

E mais não tive experiências como essa enquanto trabalhei no Hospital. Houve, no entanto, outras tantas dignas de nota. Lembro ainda do dia em que tive que entrar no Centro Cirúrgico para fotografar alguns equipamentos novos. Uma colega havia me alertado: um dia entrou lá para fazer a mesma coisa e se viu dentro de uma sala em que, simplesmente, uma cabeça era aberta. Não era o tipo de coisa que me animava a ir lá. Bom. Mas fui. Vesti a roupa obrigatória, passei por meia dúzia de portas, e cheguei a um corredor. Ao longo dele ficavam as salas em que pessoas eram abertas. Perguntei pela sala dos equipamentos. Fui levado até ela. Tive sorte: nenhuma cirurgia estava acontecendo lá naquela hora. Tirei as fotos e sai apressado de lá, tendo o cuidado de jamais olhar para os lados.

Quero falar ainda do caso em que uma banda de rock tocou no Hospital. Digo, foi na portaria de entrada – mas a portaria ainda pertence ao Hospital. Era em comemoração ao aniversário da instituição, e não era a primeira vez que isso acontecia. Tratava-se da Heyah, banda que tocava covers dos Beatles – eles inclusive já haviam tocado em Liverpool. O vocalista era médico reumatologista do Hospital. E lá faziam o seu show. Hey Jude. I want to hold your hand. Can’t buy me love. Get back. De repente, surge uma mulher. Vestia branco: também trabalhava no Hospital. Ficou ao lado do palco. Esperou a banda terminar de tocar uma música e então sobe nele. Pediu o microfone. O vocalista entregou o seu. E ela começou a discursar: era uma falta de respeito todo aquele barulho em um hospital, será que eles não tinham consideração pelos doentes, pelas pessoas que estavam internadas, o seu próprio filho estava em um daqueles quartos, ela estava indo visitar, parem com esse barulho, onde já se viu. Terminou de falar, devolveu o microfone e entrou no hospital. Depois soube que a mulher era famosa por confusões semelhantes. E a banda de rock, que subitamente via o seu desejo de alegrar o ambiente do Hospital ser confrontado, decidiu continuar. E assim fez. All you need is love. A hard day’s night. She loves you. Ié ié ié.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 08/11/2011
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