Infantilidade progressiva

Não acredito na infantilidade limitada ao tempo. Não acredito que exista uma faixa etária que ponha limites em ser criança, adolescente, adulto e, mais um pouco, idoso. A criança sempre existirá. Está fora do cárcere de um padrão etário. Semelhante imagem teve Jesus Cristo ao pedir que um "senhor" voltasse a nascer; este, por sua vez, perguntou: Como pode um homem nascer, sendo já velho? Pode entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer? Impossível, no ponto de vista ginecológico; mas, porque não buscar dentro de si mesmo a pureza de uma alegria e poder se encantar com as coisas simples do mundo.

Não é de se admirar que a palavra pureza tenha sua raiz na forma latina de dizer criança: "puer".

"Puritas Cordis".

Olhar com pureza as coisas simples do mundo.

Hoje procurei figuras de animais nas nuvens e revivi uma estranha sensação de ter olhos artísticos. Vi um elefante, coelho, cavalo e vi um menino sentado que me pareceu pensativo. Seria eu mesmo? Se fosse, estaria pensando nas brincadeiras que brincava quando criança.

Brincadeiras de rua...

Geralmente reuníamos à noite. Era uma turma considerável de crianças do conjunto F da quadra vinte e dois de uma cidade satélite de Brasília. Ceilândia. Era o Paulinho, Fábio, Luciano (Lúcio) e Gedeone (Gêu). O Itamar, Tércio (filho da D. Valda), Júnior e Misael (Bambino, irmão do Lúcio). Meus irmãos Romont (Mem) e o Waguinho também brincavam. Havia, ainda, algumas meninas, a Elisângela (Nena, irmã do Lúcio e do Bambino), Andréia (Galega), a "Tuchinha" (que até hoje não sei o nome dela) e Ivoneide (irmã do Ivanildo, que morava na casa da Nena de aluguel). Não pretendo fazer uma lista minuciosa das pessoas que participaram da minha infância, por isso, peço desculpas aos que não citei.

A brincadeira da noite era escolhida de forma democrática, a maioria vencia; mas não era organizada, era aos gritos, levantando as mãos, assobiando ou seja lá como for. Esconde-esconde, pique-pega e bandeirinha. Queimada, bete-bola (um jeito popular de jogar baseboll) dentre outras, eram brincadeiras que uniam coisas de crianças: o correr, gritar, se esconder para não ser encontrado e depois correr em direção à latinha (ao pique) sem que o que está procurando o veja, para poder redimir todos aqueles que já foram descobertos.

Reuníamos outras vezes pela manhã ou à tarde para jogar enfinca, pião, bolinha de gude ou soltar pipas, tudo isso obedecendo as leis da natureza, era as estações do ano que parecia comandar o que íamos jogar. Se fosse "tempo de chuva" era bom apostar corrida de palitos de picolé levados pela enxurrada até o bueiro. Jogar bola na chuva também era ótimo. Se o tempo fosse ensolarado estava bom para cortar uns ferros pequenos, dobrar uma ponta (cabeça) e afinar a outra na pedra para enfincar no chão, ou então, ir ao "Mercadinho Glória" comprar bolinhas de gude para jogar paredão, triângulo, casinha ou "no duro".

Bonito mesmo era quando chegava o "tempo de vento". O céu ficava com um colorido especial das pipas. Essa brincadeira exigia mais criatividade e começava no sonho e na vontade da criança: cortar o bambu, afinar as "taletas", amarrá-las com linha e medir de um lado e do outro, ali mesmo, no chão. Depois escolher as cores do papel de seda e encapar a armação (algumas vezes coladas com arroz cozido), colocar o "cabresto" com todo cuidado para não pender para um lado e a "rabiola" feita de plástico ou de papel de seda. Depois era só esperar o vento e torcer para a pipa subir sem enganchar nos fios de eletricidade. Contemplar no céu, num rebolado formoso, a pipa que "eu mesmo fiz". Era emocionante.

Sei da impossibilidade do homem de voar por si mesmo, mas, naquele momento, um pouco de mim voava. Sensação de liberdade. Dava vontade de chorar. Naquela pipa eu parecia estar mais perto de Deus.

Assim, volto a contemplação da figura na nuvem e percebo que aquela que se parecia com um menino pensativo foi aos poucos desaparecendo, deformando... não a compreendia mais. Tornou-se abstrato. Voltou a ser nuvem. Realidade.

Real idade.

Tenho um terço de um século de idade. No modo tradicional: tenho 31 anos.

Três décadas e um ano.

As imperfeições de criança permaneceram na memória, que a voz traz ao presente, num suspiro abafado de saudades: são tempos que não voltam mais! Assim pensam, nós, os adultos.

Vejo as crianças de hoje que não se detêm mais com sua criatividade, já têm tudo pronto. Elas não sabem jogar e nem se interessam por bolinhas de vidro, não sabem fazer pipas e nem se emocionar com um pouco de si mesmas no céu. Não querem voar. Não querem se libertar. Escravizam-se ao julgo sedutor de imagens televisivas, desenhos animados com mensagens de violência explícita e desobediência. E os jogos? Afinal, é melhor se emocionar com um jogo que mostra os desafios violentos com imagens quase reais dos videogames, que ainda pensar em construir seu próprio brinquedo.

Nos jogos eletrônicos, existe uma elite paga pra pensar - programar - os desafios, os estímulos, as sensações, os risos, a alegria, as raivas, as disputas, os instintos animalescos, a morbidez, os sonhos etc. Essa elite programa os jogos que a criança irá se envolver, se educar e se "divertir". Programa os sonhos, a vontade de vencer (nem que seja com uma poderosa arma disparada em uma pessoa), o instinto de violência.

Enquanto existe uma minoria que pensam por muitos, o "divertido" é ultrapassar toda a programação traçada por eles, limitando, abortando, podando a naturalidade criativa que há em todo ser humano.

Outrora as crianças que faziam seus brinquedos; hoje, os brinquedos fazem as crianças.

Por tudo o que foi escrito, sugiro um novo título: A infantil idade pro(a)gressiva.

Walter Welington
Enviado por Walter Welington em 31/12/2006
Reeditado em 31/12/2006
Código do texto: T332540
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