Era cego e não enxergava nada

Vinha vindo o cego, dando bengaladas a torto e a direito. Eu, que não tinha muito a fazer, fiquei observando. Costumo me interessar por eles. Entre todas as coisas que afetam um cego, a que mais me comove é o fato de não enxergarem nada. Estávamos na Rodoviária do Plano Piloto, em Brasília, aquela em que o governador Agnelo se faz de cego e ainda não se dignou a consertar as escadas rolantes. Bom. Eu tinha tempo livre e - já disse - fiquei observando o cego.

Era mas ou menos jovem. Uns trinta anos, talvez. E nem por isso era menos cego. Vestia uma camisa amarela que, caso enxergasse, talvez não vestisse. Mas eu dizia que ele vinha vindo, dando bengaladas. Desde o começo, percebi que a sua trajetória não era normal. Ele não seguia o mesmo fluxo das pessoas que diariamente se atropelam na Rodoviária. Ao contrário, caminhava na direção da pista em que os ônibus, também eles, se atropelam diariamente.

De repente, sua bengala alcançou a vaga de estacionamento de um ônibus. Percebeu que nela o chão era mais baixo e então parou. Olhou para um lado (Perdão! Quis dizer que ele se virou para um lado), como se procurasse saber onde estava. Virou-se também para o outro. E achou que não estava ainda no lugar certo. Voltou então a caminhar, se aproximando pouco a pouco da pista onde os ônibus passavam - e ele certamente estava escutando o barulho que faziam.

Mas por um momento, eu desconfiei dos outros sentidos daquele cego. E se fosse surdo também? E se, embora ouvindo, fosse distraído o bastante para entrar no meio dos ônibus? E se - meu Deus! - ele acabasse sendo atropelado, ali, na minha frente? Imaginei que eu era o único na Rodoviária a perceber os seus movimentos. Se acontecesse alguma tragédia, eu seria o único a me sentir culpado - afina, eu era o único que estava em condições de intervir.

E eu ainda hesitava entre intervir ou confiar nos sentidos do cego, quando um homem - um jovem, devo dizer que era um jovem - se aproximou e perguntou a ele se por acaso precisava de alguma ajuda. Na ocasião, o cego já havia dado meia volta e estava retornando - ele jamais iria descer para o meio da pista. Disse então alguma coisa ao ouvido do jovem, e que eu não ouvi. Ele então agarrou o seu braço desajeitadamente ao do cego e foram os dois caminhando.

Só o soltou quando foi pedir informação sobre a parada do ônibus que o nosso amigo cego queria tomar. Em seguida, voltou a agarrá-lo e caminharam até a parada, que ficava logo ao lado - o cego, afinal, não estava muito longe dela. Uma vez chegando lá, o jovem soltou o cego, que deve ter agradecido, e então voltou para a namorada, que o aguardava em outra parada, e voltou a comer tranquilamente o seu sanduíche, que não havia largado durante todo o episódio.

Eu devo ter me distraído olhando outra coisa, porque algum tempo depois eu percebi que também o cego estava comendo alguma coisa, talvez um pastel. Não imagino que ele tenha saído do seu posto e procurado uma lanchonete - isso seria tornar vã a ajuda do jovem. Atrás dele na fila de ônibus estavam duas mulheres, que também faziam os seus lanches, e imagino que sejam elas a explicação do pastel que agora o cego comia, com visível satisfação.

E mais não tenho a contar, pois mais não aconteceu até ele subir ao ônibus. Fiquei apenas com a impressão de que, de vez em quando, ainda é possível esperar gestos gratuitos das pessoas. E senti vergonha por não ter sido eu o jovem a carregar o cego até a sua parada - o outro agiu justamente no momento da minha hesitação. Convenhamos: é preciso fazer alguma coisa a mais do que apenas observar e depois escrever crônicas.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 26/11/2011
Reeditado em 26/11/2011
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