ELA, 94 ANOS

Deveria ser mais um desses domingos normais, insossos, com ecos da voz do Faustão ricocheteando pelas janelas chorosas de lágrimas finas vertidas pela garoa atípica de uma primavera incomum.

Na verdade, o domingo me trouxe um presente e se transformou em uma surpreendente tarde, cenário de momentos únicos, inesquecíveis.

A atriz principal: ela, 94 anos de vivacidade pura. Cabelos cuidadosamente penteados, após horas colocando os rolinhos responsáveis pelo ondulado dos fios, que também teve o cuidado de tingir, sozinha. Olho para suas mãos enrugadas e vejo as unhas esmaltadas de rosa, não por uma manicure qualquer, mas por ela mesma.

Dona de uma vaidade ímpar, senta ao meu lado ereta, altiva, de blush e batom, trazendo uma foto de sua turma do colégio de freiras espanholas, em Minas Gerais. Quer que eu a identifique entre aquelas jovens adolescentes do ínicio do século passado. Prontamente a reconheço, linda, os mesmos cabelos anelados e a pele alva em um corpo altivo. Surpreendentemente, identifica com nome e sobrenome, colega por colega de classe. Seu olhar para em uma das estudantes e seu dedo a acaricia, pois esta foi sua melhor amiga, desde a infância, sempre sentada ao seu lado nas carteiras escolares. Com relação à amiga me confidencia que não gostava muito de bailes, ao contrário dela própria, eximia dançarina.

Os seus 94 anos não impedem que dedilhe no piano sua valsa favorita, de forma impecável, e em compasso com o coração. Ela sussurra, ao pé do meu ouvido, que a música a faz lembrar os tempos dos bailes no interior mineiro, onde sua beleza ofuscava as demais. Lembra que um médico conhecido na cidade a cortejava, mas em vão, pois seu coração gostava mesmo de uma farda e foi um militar que nele se instalou por mais de cinquenta anos, quando enviuvou. Casou por amor, teve filhos com parteiras em uma fazenda genuninamente mineira.

Hoje, na parede da sala, telas retratam cenários de Minas e imagens sacras pintadas por ela em mais de oito décadas de vida. Seu dom criativo não termina aí, pois para e me olha e diz um lindo versinho. Em seguida, surge com duas caixas de papelão e delas emergem sabonetes por ela pintados, já neste mês de novembro, quase prontos para serem afetuosamente doados aos amigos no próximo Natal.

Hoje, como em todo domingo que com ela estou, acordei e encontrei a mesa mineiramente posta para mim: o queijo de minas, o pão quentinho, as frutas descascadas e, o que é melhor: o café coado no coador de pano mineiro, por ela: 94 anos de vida, 94 anos de afeto, carinho, amor pelos seus. E eu, há não muito tempo, já na maturidade da vida, passei a ser um deles. E logo aos domingos que seriam tão vazios, tão óbvios, se não fosse ela. Um privilégio, com certeza.