Ninguém notou

Não que ele fosse melhor do que os outros por tê-la notado, mas isso lhe causou um misto de orgulho e vergonha. O mais impressionante é que os sentimentos ocorreram quase de forma simultânea. Chegou a pensar em sentar-se ao lado dela, em perguntar o que estava acontecendo. Por que estava ali? Qual o motivo das vestimentas esfarrapadas? Dos olhos profundos e tristes... da lágrima sufocada, que, teimosa, não se deixava cair...

Não o fez. Apenas seguiu junto com a manada. Estavam todos apressados. Ele também. Suas vidas pareciam mais importantes do que qualquer outra coisa. Cada um com seus problemas. A "gravidade" de seus dramas particulares os impediam de olhar em volta, para além de onde apontava o nariz.

Sentiu-se orgulhoso por ser diferente dos demais. Afinal, havia parcebido a presença daquela senhora. Estava sentada ao chão, uma das sandálias arrebentadas, calça e camisa sujas. Com as pernas junto ao peito, lançava um olhar perdido rumo ao nada. Era um espaço de tempo impossível de se penetrar pelo milésimo de segundo concedido à contemplação desta desgraça. Foi possível observar apenas as mãos subirem dos joelhos ao rosto e a boca tentar balbuciar algo, sem emitir som.

A vergonha acabou tomando-lhe por inteiro, tamanha a incapacidade – falta de coragem talvez – de aproximar-se da pobre infeliz. O que iria perguntar? O que os outros iriam dizer? Qual reação deveria esperar? Sentiu nojo de si mesmo. Lembrou de cada dia "dedicado" às lutas sociais. Teve raiva de não conseguir passar de uma simples comoção para uma atitude qualquer. Sentiu repulsa quando lembrou dos discursos proferidos ao longo de sua trajetória de militância. Sempre bradou em defesa dos menos favorecidos, dos movimentos sociais, das minorias, as quais, na verdade, foram e continuam sendo a maioria miserável de seu país. Todo aquele falatório em defesa de uma sociedade mais justa. O projeto do partido, cujas teses eram consideradas fundamentais para – acreditava ele – modificar a sociedade por intermédio das políticas públicas.

Sentiu ainda mais desprezo de si mesmo lembrando-se de tudo isso. Sua sensação foi de infâmia. Não passava de mais um da mesma manada, que, por muitas vezes, chamou de burra e ignorante. Atentar para as injustiças sociais não o tornava melhor do que os outros, talvez fizesse dele ainda pior, pois não era capaz de vencer o limite do discurso – incluindo a elaboração de trabalhos científicos – apenas para agir com solidariedade e humanismo.

Não conseguiu se colocar ao lado de uma pessoa que sofre. De dar a ela mais do que o direito de ser vista e lembrada em debates acadêmicos e políticos. Dar a ela o mesmo que gostaria de receber se estivesse naquela condição. Fazer alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse aliviar o sofrimento, de ambos.