Lembranças

Natal de 1970       


         Era véspera de Natal de 1970. Um garotinho de 4 anos corre pela casa, curioso sobre tudo. Estava de visita em casa de parentes. Passara o dia brincando no vasto quintal, onde tinha uma criação de coelhos, de sua irmã; recebeu bronca dela também por dar tanta comida pra eles. Vez ou outra corria pra dentro de casa pra ver o cuco de um relógio de parede. Estava eufórico. Papai Noel iria chegar naquela noite. Vinha pensando nisso há um bom tempo. Tinha tudo esquematizado: Iria dar um flagrante no bom velhinho.

                Para tanto já havia juntado algumas latinhas, três pra ser exato, dessas de extrato de tomate, e outra semelhante. Perturbara a empregada que estava cozinhando, requisitando um punhado de feijão cru.

                - Pra quê isso menino? Isso “num é brinquedo não”.
               - Não é brincadeira. É muito sério.
               - Vá brincar lá fora.

                “E agora?” – pensa ele. “Só preciso de um punhado de feijão pra fazer funcionar isso aqui”. Fica por ali, dá uma voltinha.
               - Moça tão te chamando lá na sala.

               A empregada sai pra ver o que querem com ela. Assim que ela passa pela porta ele vai até a primeira lata de metal que estava sobre a mesa. Precisava ser rápido. Sem pensar muito enfia a mão lá dentro e tira um punhado de grão. Sai correndo pela porta da cozinha sem ser notado por mais ninguém. Percebe depois que não era feijão e sim grãos de arroz – e sem casca – Faria menos barulho que o feijão, mas foi o que se pode arranjar. Dividiu como pode entre as três latinhas, testou uma a uma. “Acho que dá pra ouvir”.

               Após o jantar, e bem depois disso, já havia passado e muito do horário de dormir, já altas horas, quase nove da noite, sua mãe o intima a ir dormir. Não reclama muito já que queria colocar logo seu plano em ação.

               Busca as latinhas e vai pro quarto. Coloca uma debaixo de cada janela (eram duas). Estavam trancadas, mas Papai Noel poderia dar um jeito de entrar por ali. A outra provável entrada seria pela porta. Após sua mãe ver se estava tudo em ordem ele se levanta e coloca a terceira latinha atrás da porta. Perfeito. A arapuca estava armada. Desta vez ele não escaparia. Pularia na frente dele. Ele não teria como escapar daquela vez. Faria as perguntas, do tipo: Onde mora, como funciona o trenó, o que faz nos outros dias do ano, se poderia escolher o presente na hora, enfim, tiraria todas as suas dúvidas.

               Arapuca armada volta a se deitar. Fecha os olhos, não totalmente, pra que ele não perceba nada. Tinha que pegá-lo no susto. Fica bem quietinho, como um caçador aguarda pela sua presa. O tempo passa lentamente. Aguarda uma eternidade, um tempo enorme, algo pra quase cinco minutos, abre o olho de repente. “Será que ele já passou?”.  Corre o olhar pelo quarto, na penumbra. Não vê nada. Percebe sua armadilha ainda armada. Nenhum presente por ali. “Não, ainda não passou. Vou esperar mais”. Volta a fechar os olhos, sempre atento a um possível barulho das latinhas.

               Quando volta a abrir os olhos percebe a claridade do dia. Estava amanhecendo. Fica um pouco frustrado ao perceber que as latinhas continuavam lá. A armadilha não funcionara. Talvez tivesse dado certo se fossem grãos de feijão. Olha para o centro do quarto e lá estava ele, novinho em folha, último modelo 70/70, imposto pago, pneus zero quilômetro: Um velocípede, tipo caçamba, na cor azul. Ninguém mais dormiu naquela casa, tamanha era a felicidade daquele garotinho. As latinhas? Quem se importa com elas? Papai Noel já havia passado mesmo. No próximo ano pensaria noutro plano pra dar um flagrante nele. Pena que entre aquele e o próximo Natal fizera outra descoberta estarrecedora, inimaginável, estragando com a ilusão dele, que não vem ao caso colocar aqui. O que o garoto queria naquele momento era desfrutar de seu novo “carango”.



 
(Dezembro, 2011)
Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 24/12/2011
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