CACEBA

C A C E B A

Alírio Silva Não adianta procurar no dicionário, pois a palavra não existe. Ou melhor, não está registrada lá. Existir existe, é lógico, do contrário não estaria aí, enfeitando o fron-tispício desta patacoada. Mas é propriedade particular. Mestre Aurélio que me perdoe o egoísmo. Aliás, não é bem egoísmo, é mais a necessidade de exprimir uma situação da qual ele e sua brilhante equipe não tiveram conhecimento: tenho certeza de que não conheceram o Caceba. . .

Ela – a palavra – encontrei-a anos atrás, num quintal grandão, embaixo de um pé de manga-abóbora, lá pras bandas do Engenho, entre o Picão e o São Francisco, ro-tulando uma pessoa. E como nunca a vi escrita, ficou difícil pesquisar sua etimologia. Vai com “c” mesmo. Poderia ser com dois esses, mas parece desperdício.

E era nome de gente! Era, não, ainda é. O significado? Coisa velha, imprestá-vel, sem valor. Isso me “agarantiu” o Joaquim Pedro, analfabeto de terceira geração - filho e neto de analfabetos - , como diria um professor de Português que tive no gina-sio e que, hoje, considero o grande culpado por eu me meter a escritor.

Caceba. . . Dizem que o nome de batismo era Israel. Entretanto poucas pessoas sabiam. Talvez nem ele mesmo se lembrasse mais, tamanha era a familiaridade com o apelido. Fora criado pelo meu avô, de quem, em sangue, era sobrinho. Chamava os velhos de pais, cujos verdadeiros não chegou a conhecer. Ou não se interessava, sei lá. Bruto “qui nem portão de cemitério”, “surdo qui nem tiú”, Caceba não chegou a se ca-sar. Nem mesmo a namorar moça solteira ou viúva alegre. Era apaixonado mesmo era pela Genoveva! Como, entretanto, a lei dos homens não permitia seu matrimônio com uma égua, ficaram apenas amantes. . .

Mas vamos à história do Caceba. Um dia, mês de outubro ou novembro, solzão quente de arrebentar mamona, Caceba e Samba batiam os cacumbus às margens do Picãozinho, uma valeta que ligava o pântano ao córrego do Picão, primeirando uma ta-lhada de arroz cana-roxa.

Antes, porém, há que se explicar quem era o seu companheiro: Samba, mulato café-com-leite (mais café do que leite), surgira na fazenda num domingo de tarde, ra-pazinho ainda, pedindo pousada no paiol. Vinha lá do Sertão, meio sem destino. Alper-catas de couro cru, calcanhar estriado e barriga vazia, resolveu aquiescer ao convite do velho Guilhermino e ficar mais uns dias, pra ajudar na quebra do milho. Já ia pra mais de trinta anos!. . . Solteiro também. Recatado, pouca fala e calma de sobra, acabou buscando a família, ou seja Sá Barba, a progenitora, com quem se instalou numa cafua na cabeceira do brejo. Não era cabra letrado, mas desenhava o nome com alguma difi-culdade, sempre alegando defeito na vista: Orozimbo Ferreira da Silva.

E agora lá estavam os dois, cortando a marmelada teimosa do arroz cana-roxa. De repente Caceba parou de capinar, enxugou o suor da testa com as costas da mão, soltou um suspiro meio assobiado e, dando de mamar ao cabo da enxada, arriscou, arrastada e demoradamente:

- Samba, posso te priguntá u’a coisa?

O mulato repetiu o mesmo ritual do companheiro. Olhou pro sol, que marcava umas duas horas da tarde, chutou a última moita de capim que acabara de cortar e la-muriou:

- Êh, êh!.. . lá vem merda. . .

Caceba sorriu um sorriso maldoso, limpou a garganta seca duas ou três vezes e sapecou:

- Cê sabe atá u’a gravata?

Alírio Silva
Enviado por Alírio Silva em 05/01/2012
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