O velho e o mar

O VELHO E O MAR

A praia já estava quase repleta. Pequena, atraía a atenção dos turistas pela beleza de suas areias claras e a mansidão das ondas do mar. O ambiente era dos mais encantadores, prova irrefutável da capacidade artística da natureza. O mar umedecendo as barras do horizonte, lá longe, transmitia-nos uma sensação de pequenez, de insignificância diante daquela imensidão. E a espuma meio que ferruginosa da água salobra, quebrando-se nas costas da gente, dava como que uma sensação de limpeza, não uma limpeza ensaboada, artificial, perfumada, mas animal, empírica e natural, como se nos transportasse milhares, milhões de anos no tempo e nos colocasse na entrada de uma caverna, isolados da civilização e totalmente alheios às transformações da modernidade.

O sol brincava com as crianças, carregando água em vasilhas de plástico, transformando conchas em obras maravilhosas, construindo castelos de muitas torres, despejando inocência em montes de areia-sonho.

O mundo estava todo ali, absorto, despreocupado, indiferente e enamora-do das cores naturais. Ninguém conhecia ninguém, mas todos se amavam mútua e desinteressadamente: o político importante, o menino do picolé, o médico de renome, o homem da latinha de cerveja, o cronista do grande jornal, a baiana do acarajé, o motorista da madame, a empresária da moda, o vendedor de água de coco. . .

De repente os banhistas foram sendo tomados de um esfriamento geral. Pouco a pouco os jovens atletas pararam de jogar frescobol, as mulheres se levan- taram das esteiras estendidas na areia fina, interrompendo o êxtase feminil do bronzeamento, os vendedores suspenderam as propagandas de seus produtos. Só as crianças continuaram na empreitada das construções.

Todos olhavam alguém que chegava: um velhinho dos seus noventa anos! “Ou mais”, observou alguém perto de mim, sorvendo o último gole da cerveja já morna pelo mormaço. Calção largo, quase atingindo o joelho, bengalinha na mão direita e bóia de plástico na esquerda, claudicante e vagaroso, avançava lenta- mente, buscando o mar. A água parecia querer fugir de seu alcance, talvez teme- rosa de se sentir culpada de um acidente fatal. Mas ele não ligava. Caminhava resoluto e indiferente aos cochichos que surgiam quando passava.

Havia um zum-zum geral. Ninguém mais nadava. Ninguém mais jogava. Ninguém mais gritava, ninguém mais corria. . .E o velho seguia. Guerreiro após a batalha, cansado mas altaneiro, vencido mas orgulhoso, seguia desdenhoso dos vencedores. O corpo desprovido de carnes deixava à mostra os ossos salientes das costelas, as protuberâncias dos cotovelos; nas pernas trôpegas e descarnadas acentuavam-se as veias calosas e azuladas. Mas ele não ligava. . .

Paciente, atingiu a saia do mar. A expectativa aumentava a cada gesto seu, por mais vagaroso que fosse. Por mais natural que parecesse. Soltou a bengali- nha ali mesmo, onde a espuma se afasta rapidamente da areia, deixando apenas um rastro efervescente. Tocou a água morna com o pé ossudo e não aparentou sequer um sintoma de surpresa. Entrou mar a dentro, lentamente, até que a água lhe laçou os joelhos pontudos. Levou a bóia até a cintura e, num ato de heroísmo velado, entregou-se, de corpo, ao abraço íntimo com o oceano.

Houve um murmúrio geral, quase um frêmito. Olhando-o boiar despreocu- pado e sereno, assaltou-nos, instantânea e contagiantemente, um sentimento de alívio e, ao mesmo tempo, de inveja!. . .

Alírio Silva
Enviado por Alírio Silva em 08/01/2012
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