Estrupicio

ESTRUPÍCIO

Alírio Silva

De tardezinha, já lusco-fusco, Beto Fuscão descansa embaixo de uma cagaiteira já quase sem folhas, bem no terreiro de sua morada. Tira da baínha o canivete Tramontina e, com ele, vem um punhado de lembranças: a venda do Sô Durinato, a mesinha de truco encostada num cantinho, bem debaixo da lâmpada mais forte, a meiota de pinga dando a volta na mesa, enchendo a cuiazinha que é medida certinha, o prato de salame que corre um por um dos parceiros, o baralho ensebado que exige um exercício mais forte dos dedos pra separar as cartas.

Do bolso da bunda da calça “jeans” na última moda (esfarrapada, rasgada na altura do joelho e parecendo suja - só que a sua estava suja mesmo! - na direção das coxas) retira uma cabeça de palha de milho, da qual só extraíra a espiga, sem o cuidado de eliminar as palhas de fora, mais grossas, inade-quadas para o feitio do pito e, com ela, vem mais um punhado de pensamentos: a roça deste ano, no caminho que iam as coisas, não produziria palha que nem aquela, grande, rechonchuda, macia, sedosa e fina, melhor até que papel! Se São Pedro não tivesse dó, as espigas não passariam de chupetes curtos e com grãozinhos salteados, às vezes até chochos.

Do bolsinho da frente sacou um naco de fuminho baio que, depois de cheirar com prazer, começou a picar, depositando os fiapos na concha da mão esquerda, na qual segurava a palha já cortada e lambida, entrelaçada entre os dedos. Despejou lentamente o fumo picado na palha em forma de cocho, enrolando-a com vagar, levou o cigarro à boca, lambeu-o de fora a fora, fazendo que a auréola fina da extremidade da palha grudasse no corpo do pito. Acendeu com o isqueiro Bic que comprara na venda do Sô Durinato, puxou uma tragada gostosa, ajeitou as costas no tronco da cagaiteira e soltou o olhar pasto a fora, que desceu a vargem de braquiária amarelada da beira do rio, atravessou-o, subiu no cerrado ralo do outro lado e foi fixar no horizonte embaçado e distante, onde uma nuvem solitária lembrava uma canoa amarrada num barranco, que depois virou um cavalo puxando uma capinadeira.

- Beto. . . qué qu’isquenta o cumê agora ou posso vê a “hora do anjo” na Rede Vida, primêro? - Pode . . .

A voz melosa e arrastada de Marilac mexeu com o pensamento diáfano e descompromissado de Beto Fuscão. Rápido que nem beija-flor, voou da nuvem - que agora era uma fogueira de São João”pis-piano” a pegar fogo - pra festa de Santa Luzia, lá no arraial, uns vinte e tantos anos atrás. Marilac, com seus dezoito ou dezenove anos de idade, cabelo escuro, amarrado à moda rabo-de-égua, olhava pra ele com insistência, no último degrau da escadaria da igreja, após a missa do Padre Antenor. Recém-chega-da à Vila, vindo lá das bandas de Mato Grosso, tinha um jeito de mulher “pra frente” e espevitada, ver-dadeira potranca virgem de cabresto. Daí a “juntar os trapinhos”, com troca de alianças, sermão do Pa-dre Antenor, cervejada, frango-cheio, macarronada, doce -de -raiz -de –mamão, foguetório e arrasta-pé, foi um pulinho. E viveram felizes por muitos e muitos anos. . . Tomou juízo. “Quetô”. Deu até pra comprar aquelas terrinhas ali na beira do rio. . . As vaquinhas girolandas meio-sangue, baldeiras, cujo leite , embora o preço andasse sempre desatualizado, dava pra ir tenteando até que as coisas melhoras-sem . . .O que, aliás, logo, logo, aconteceria, segundo Seu Gervásio, Diretor da Cooperativa , que andara por aquela região recentemente, pedindo votos pra sua reeleição.

Pensando bem, até que não podia se queixar. Tinha seu carrinho, que começou fusquinha (aliás fuscão, dando, inclusive, origem ao seu apelido) e, depois de algumas catiras e negocinhos, viera dar na caminhonete “siminova”que descansava ali no barracão. . . Tinha sua televisão, que começou preto-e-banco e virou “colorida”, onde a Marilac acompanhava as novelas, assistia à missa no domingo e nunca perdia a “hora do anjo”, como fazia agora. E onde ele se deliciava com as maravilhas do Globo Rural de domingo e as apresentações de duplas sertanejas, ou os “causos” do Rolando Boldrin. . .´

É. . . até que não tava ruim. Mas a Marilac. . . sei não. . . era trabalhadeira, dedicada, boa de co-zinha (o tutu de feijão, daqueles que brilhavam de gordura e que nem garrava na panela, a macarronada de domingo, com aquele queijo ralado pro riba, o franguinho caipira!); mas faltava alguma coisa nela. . . O cabelo rabo-de-égua virou um coque meio grisalho; a cintura engordou e o vestido, naquela altura , vivia ensebado de tanto ela limpar as mãos; as pernas cada vez mais cheias de veias arrebentadas, azu-ladas (aí o Beto deu uma risadinha marota, lembrando de uma historinha de príncipes e princesas num livro da escola: . . .”sangue azul”. . .)

- O cumê tá quente, Beto, vem cumê antes qu’isfria . . .

- Tô ino. . .

Levantou-se devagar, amparando-se no tronco da cagaiteira, ergueu os braços, espreguiçando e soltando uma mistura de suspiro e exclamação; pela porta entreaberta da cozinha avistou a mulher na beira do fogão, mexendo as panelas e, baixinho, quase num sussurro:

- Tô ino. . . istrupiço!. . .

Alírio Silva
Enviado por Alírio Silva em 08/01/2012
Código do texto: T3429567