Pesadelo
 
Está tudo molhado por aqui. Eu queria saber quem chora tanto lá no céu para derramar tantas lágrimas assim. Chove sem parar noiteediaenoite e eu não gosto dessas chuvas sujas, barrentas, que vão caindo e levando tudo de roldão, não respeitando nada. Não vivíamos essa situação há anos, a cidade se julgava preparada e ninguém ainda deu a resposta correta. De onde veio tanta água, ninguém responde com exatidão. Rompeu uma barragem aqui, ou foi acolá? Ou foi simplesmente uma tromba d’ água? Ninguém diz coisa com coisa e o que sei com certeza é que a água invadiu casas de amigos meus e eu nem pude estar junto para prestar-lhes solidariedade. A água foi misericordiosa comigo e minha família talvez porque soubesse que tragédia maior nos atingiria – uma morte quase anunciada se abateu provocando tanta dor que mais parecia que o céu inteiro chorava conosco – nessa segunda feira, ao anoitecer meu sobrinho Alexandre morreu.

Alexandre é(ra) o meu sobrinho mais velho. Primeiro filho, primeiro neto, primeiro sobrinho. Se alguém me perguntar, qual era a maior qualidade do Xande, eu não hesitaria um minuto em responder: a bondade. Ele era um menino bom, sim um menino porque na verdade é o que ele foi durante toda a sua vida – um meninão. Para ele todo o mundo era bom e não via maldade em nada nem em ninguém e talvez tenha sido por isso que foi facilmente envolvido por essa rede nojenta que ameaça o país – o crack. Sim, ele era um viciado e não teve forças para reagir e sair dessa vida, embora ajuda não lhe tivesse faltado.

Uma vez ele me procurou – estava freqüentando um grupo em busca de conhecimentos mais elevados e queria que eu fosse a algumas reuniões com ele. Eu não hesitei e durante um bom tempo nós íamos juntos buscar conhecimentos na fonte, através de El Morya e os Mestres Ascensos, nas reuniões da Summit Lighhouse.  Era um discípulo aplicado e eu tive esperança. Infelizmente o grupo que se dedicava a esses estudos acabou, mas Xande continuou sozinho a sua busca. Só que não teve forças para se manter firme no caminho.
 
 
Segunda-feira a noite mal tinha começado, o que aconteceu ninguém viu. Eles estavam sozinhos, o assassino e ele. O local? Uma dessas casas onde o viciado pode cuidar do seu vício à vontade, perto, muito perto da casa de sua mãe, sua avó, seus irmãos. Outro morador da casa chegando de não sei onde encontrou seu corpo estirado, já sem vida, em um dos cômodos. Chamou o Corpo de Bombeiros, chamou a Polícia, chamou a família, mas já era tarde para quase tudo. Ele estava morto, sem resistência, a golpes de tesoura, golpes tão fortes que a tesoura se quebrou dentro dele. O assassino? Foi preso na mesma noite, bebendo cerveja em um boteco com as mãos ainda ensanguentadas. Confessou o crime, mas alegou não saber o motivo porque fizera aquilo. Sem nenhum conforto nisso, só a tristeza em saber que era outra vítima.

Foi uma longa noite e um dia mais longo ainda. Eu estava lá, na Maternidade no dia em que ele nasceu. Não poderia deixar de estar lá, no cemitério, no dia em que ele partiu. Mas essa não deveria ser a ordem das coisas, não deveria.

Ainda não fui ver os estragos da chuva que continua. Ainda não caíram as fichas dos acontecimentos. A casa de meu amigo e durante seis anos e meio companheiro de trabalho no Depto. de Cultura ainda está lá, intacta. Alexandre vai concordar finalmente em voltar mais uma vez para a Instituição que sua família encontrou para que  tentasse se livrar da droga. Certamente que essa chuva me fez dormir e eu tive um pesadelo. Certamente que daqui a pouco vou acordar e o sol vai brilhar outra vez e tudo estará no lugar certo. Preciso acordar...