As fabulosas aventuras de Santos - Cap. 1

Lá estava ele, de frente para o espelho, penteando os cabelos que temia faltar-lhes um dia por conta dos malditos genes. Seu nome era Santos. Marcos Santos de Oliveira, 23 anos, primogênito de três filhos, sangue tipo AB, morador do apartamento número 502 do edifício Coco Verde na Avenida Araucárias de Águas Claras, região administrativa da capital da República Federativa do Brasil e 225.789º cidadão cadastrado no sistema da Receita Federal, para ser mais completo. Mas ser completo nunca foi uma preocupação real para Santos. Talvez por isso que ele se contentou com um emprego técnico meia-boca em um órgão público qualquer, morar com os pais em um apartamento qualquer e ter uma vida como qualquer um. Santos era apenas mais uma formiga no formigueiro, e estava satisfeito com isso. Quem sabe, se fosse possível haver o título de Cara Mais Comum do Mundo, ele ganharia, a despeito da falha lógica de ser um cara comum ao portar um título reconhecido a nível mundial. Enfim, Santos estava comumente atrasado a ponto de não poder ouvir uma descrição sobre ele suficientemente detalhada acerca da sua falta de singularidade. E, como uma pessoa jovem, ele estava naquela fase de pensar sobre esses dilemas da vida. Mas tudo o que ele queria agora era não perder o metrô e chegar a tempo no serviço (bendito dia 23 de dezembro, último dia de trabalho antes do recesso de fim de ano).

Na caminhada para a estação de metrô, Santos escutava música e estava sempre imaginando como seria um videoclipe para aquela música. Todos os movimentos e todas as pessoas ao seu redor eram inspirações para a sua imaginação, que sempre fora bem desenvolvida. Imaginava se em uma outra vida ele não seria um diretor de cinema. Sobre a sua imaginação, aliás, é preciso tomar nota que sempre foi a causa e solução para seus problemas. Quando criança, Santos gostava de colecionar tampas de garrafas, matar dragões e se perder em florestas. Gostava também de salvar princesas indefesas, espocar cabeças de pessoas nas multidões com a ponta dos dedos e dissecar sapos e rãs. É claro que, consequentemente, ele acabava quebrando taças e porta-retratos de sua mãe, ralando o joelho e torcendo tornozelos, sendo suspenso do colégio e de fato se perdendo nas florestas. Um psicólogo chato diria que ele sofria de hiperatividade. Um psicólogo de má fé diria que ele sofria de distúrbio de atenção. E um psicólogo chato de má fé diria que ele sofria de alguma doença rara de superatividade mental, receitavel apenas com a marca de remédio mais cara do mercado (que coincidentemente seria da empresa da sua família). Mas todos nós sabemos bem que Santos sofria apenas de algo conhecido como infância, se é que podemos usar o termo 'sofrer'. Mas é importante que o leitor preste atenção à condição imaginativa de Santos, que se revelará importante para o resto da história.

E la estava ele, agora sentado no último banco não reservado para idosos que sobrou no vagão, ouvindo 'You Can't Hurry Love' do britânico Phil Collins. E no refrão da música parou de imaginar como seria o clipe da música (coisa rara na sua jornada para o trabalho) para perceber as coisas ao seu redor por elas mesmas, sem nenhum objetivo específico. O que ele pensava poderia ser uma tema que renderia uma ótima monografia para um curso de Antropologia Social e torná-lo conhecido internacionalmente no mundo acadêmico, mas esse certamente não era um objetivo palpável. O que ele estava pensando era no modo estranho que todas aquelas pessoas do vagão faziam parte de sua vida. Ele não as conhecia, mas via quase todo santo dia as mesmas pessoas neste mesmo vagão, muitas vezes nos mesmo lugares. Achava que seria possível envelhecer com elas sem ao menos trocar palavras ou olhares. Aquela senhora toda encolhida com a bolsa no colo, por exemplo, sempre sentava na mesma posição, olhando para a janela e talvez orando para que esse suspiro não fosse o seu último. Ele não poderia saber de fato qual era a sua rotina ou por que todo dia ela estava no mesmo vagão que ele, mas ele sabia que a amanhã a encontraria lá. Afinal, ela era apenas mais uma pessoa normal como ele, com sua vida rotineira. Ou os rapazolas de uns 15 anos que estavam sempre gasguitando no fundo do vagão com o uniforme escolar. Quem sabe ele ainda os viria se fossem bons alunos e conseguissem um emprego próximo de alguma estação de metrô e, pelo acaso do destino, acabassem pegando o mesmo trem que ele; ou se fossem maus alunos e repetissem de ano tantas vezes a ponto de acompanharem a aposentadoria de Santos pegando o mesmo vagão. Também tinha aquela moça bonita de cabelos castanhos quase loiros (ou loiros quase castanhos) que por alguma razão chamava sua atenção. Talvez fosse casada, ou tivesse namorado, mas Santos estava determinado a falar com ela algum dia, nem que fosse um breve comentário sobre quão cheio estava o trem. Mas logo Santos se desviou do pensamento e voltou à rotina de sua produção cinematográfica de videoclipes.

"Dim Dom - Estação Terminal Central. Todos os usuários devem desembarcar - Dim Dom" dizia a voz pelo auto-falante, informando que era a última estação do metrô e que todos os usuários deveriam desembarcar. Santos, é claro, como mais uma formiga-homem, também desembarcou. Foi ao serviço, tomou um cafezinho, conversou com os colegas e fez o que deveria fazer, tudo como mais um dia comum na sua vida (prometo ao leitor que esta será a última vez que ressalto como Santos era apenas mais um cara comum). Na volta para casa, porém, aconteceu algo estranho, mais uma daquelas bizarrices que logo esquecemos em meio a outras preocupações. O trem onde Santos estava sofreu um baque como se tivesse batido com toda a força contra uma parede. Bom, provavelmente não foi uma batida tão forte, pois todos os usuários sairam ilesos, sendo que o maior dano foi o desmaio de uma grávida por conta do susto. Mas é claro que a muvuca foi considerável, pois todos os que estavam em pé saltaram uns três passos adiantes, a luz faltou no trem (e dentro do túnel o breu era completo) e houve muitos gritos de desespero, causados mais pela paranóia inspirada por filmes catástrofes americanos do que pela batida em si. Mas no fim das contas tudo voltou ao normal após uns cinco minutos, e tiveram que se contentar com a áspera voz do auto-falante dizendo que se desculpavam muito pelo imprevisto sem dar uma explicação plausível do que causou a batida. Santos tentou não pensar muito nessa estranha experiência e logo recolocou os fones de ouvido esperando chegar a sua estação. Depois voltou para casa com os passos apertados a fim de não se molhar muito com a garoa. Deitou-se na cama e tirou os sapatos apertados, sentindo um alívio que pode ser comparado com o alívio de entrar de férias. Mas o seu grande alívio, na verdade, era pensar naquela moça do trem que ainda não sabia o nome e, de alguma forma, o hipnotizara. Não que estivesse apaixonado ou desesperado por um compromisso, mas sabemos que as vezes a simples lembrança de alguém nos reconforta.

No dia seguinte, logo pela manhã, Santos foi se encontrar com Benjamin Salomon, um dos poucos judeus que existem na cidade. Benjamin (ou Ben, como era carinhosamente chamado) era amigo de Santos desde seus tempos de moleque, e apesar de todas as diferença, mais pareciam irmãos. Combinaram de se encontrar em frente a loja de conveniencia do posto de gasolina, o eterno ponto de encontro da dupla:

"E aí, cara"

"Fala, Santos", disse Benjamin. "Vamos apressar os passo porque já estamos uns dez minutos atrasado. Trouxe o dinheiro? Ótimo, seria vergonhoso se não levassemos os refrigerantes que prometemos pra tomar com a galera depois do futebol".

"Pois é. E, cara, já faz quase um semestre que eu não vou jogar com a galera, espero que eu não esteje enferrujado".

"Você sempre esteve", disse Ben com um sorriso contagiante, daqueles que você ri mesmo quando você é a piada.

Desceram a rua e chegaram finalmente ao campo de futebol, onde haviam umas vinte pessoas, das quais Santos conhecia de vista metade e conhecia de fato apenas um quarto. Estavam se alongando e começariam o jogo com ou sem Santos e Ben. Mas sem se importar com isso, os dois também se enturmaram no alongamento. "Segurem a ponta dos pés", gritava o rapaz que conduzia o alongamento coletivo. Santos observava como seus amigos haviam mudado. Paulo, por exemplo, estava com uma barba respeitável e nem parecia mais o frágil rapaz de óculos que mal conseguia se sustentar em suas pernas finas. "Vinte polichinelos!". Matheus, o branquelo de pais negros, era o que menos havia mudado, continuava acuado e sempre paranóico com o que falavam dele pelas costas (quantas vezes já deve ter ouvido algo sobre a traição de sua mãe com o leiteiro quando, na verdade, era apenas fruto de uma raridade genética?). O irmão de Matheus, também amorenado, já estava na fase do estirão e tinha uma postura facilmente substituível por uma placa escrito "olha, eu cresci, já posso jogar bola com as pessoas grandes" nas costas. "Estiquem o braço para cima!". Santos estranhou já se sentir cansado logo no alongamento, mas talvez fosse apenas o resultado de 6 meses de sedentarismo bruto e completa falta de qualquer exercício físico que não fosse correr para a estação para não perder o trem. "Acabou o alongamento, vamos jogar". Era agora. Talvez ele até fizesse um gol.

Estavam dez para cada lado, o time com camisa e o sem camisa. Também haviam algumas garotas de uns 17 anos bem feinhas e com roupas curtas assistindo o jogo tencionando dar em cima do artilheiro para, quem sabe, assim conseguir algum status pífio que não conseguiria por conta própria. E a bola rolava normalmente, mas o resultado e os lances do jogo certamente não são de interesse para a trama do livro. Mas a cena que vale a pena ser comentada se refere a nosso protagonista. Após uma cobrança de falta do time adversário, Santos recebeu uma bolada no peito e caiu no chão de tamanha dor. Ele sentia o peito pulsando como se estivesse tomando vários choques seguidos, e perdia o ar aos poucos. Sabia que havia algo estranho, pois por mais forte que fosse o chute nada justificaria tamanha reação do corpo. Dos vinte jogadores, quinze se juntaram formando um círuclo em volta dele preocupados com sua condição. Tentaram entender o que acontecia, mas não havia nada para entender se não o fato de que Santos agora estava inconsciente. Alguns tapas na cara e uma bela golada de água normalmente resolveriam o caso, mas nenhuma das almas presentes tomou iniciativa.

Agora, me desculpo para interromper o capítulo (que será bem mais curto que o de costume). Depois a situação será retomada e explicada devidamente, mas não há circunstância mais oportuna que essa para voltar um pouco no tempo e conhecermos melhor a vida de Marcos Santos, e, claro, segurar vossa curiosidade como uma estratégia de marketing para abastecer o interesse pela trama.

Athos Krochensko
Enviado por Athos Krochensko em 14/01/2012
Reeditado em 14/01/2012
Código do texto: T3440609